31 agosto 2013

Finais felizes

Um homem às vezes quase se emociona. Esta é a sala de concertos mais bonita onde já estive, Troldhaugen, às portas de Bergen. Ouve-se Grieg à hora do almoço e lá em baixo, à beira do rio, está o anexo onde Grieg escreveu muitas das suas obras. Ouvir Grieg é sempre espantoso. Ouvir Grieg aqui, de olhos fechados e de bem com o mundo, é outra dimensão e não admira que um homem quase se emocione.

Os Novos Maias, ou lá como se chama aquilo (V e VI)

O que Gonçalo M. Tavares escreveu para a continuação de "Os Maias" tanto dava para continuar "Os Maias", como a Bíblia, "Os Cinco no Lago Negro" ou um desses livros de auto-ajuda. Espanta-me que lá pelo Expresso não tivesse havido ninguém que, ao ler aquilo, lhe tivesse dito "Gonçalo, rapaz, isto não serve, é fazer outra tentativa, e que saia jeitoso desta vez". Gonçalo havia de se abespinhar, invocar a criatividade, a liberdade artística, o tal responsável, havia de tamborilar com os dedos na mesa de madeira, o Gonçalo havia de perceber os sinais e tinha mesmo que se esforçar, a coisa havia de se dar, tentativa-erro, o Gonçalo M. Tavares havia de atinar. Mas não, niguém lhe explicou que aquilo não era nada e foi uma pena. Um em dez.

Já a Clara Ferreira Alves, espantou-me, acontece sempre espantar-me quando espero pouco e depois sai uma coisa em condições. Bem feito, credível e, como se trata do neto Maia, não parece tão grave a blasfémia. E, além disso, deu-me vontade de ir a Nápoles, o que, parecendo que não, é obra. Seis em dez.

30 agosto 2013

Jo Nesbo pode ser bom a escrever policiais, mas...

"Não há maior afrodisíaco para uma mulher, do que um homem que está apaixonado"

"Não há maior afrodisíaco para um homem, do que uma mulher que não está apaixonada"

Jo Nesbo, pela voz Sven Sivertsen, o engatatão de serviço, in "A estrela do Diabo"

20 agosto 2013

Fosse J. Rentes de Carvalho apenas um cavalheiro...

...e, diplomático, agradeceria,  breve e gentil, aos que por aqui passaram, certamente não lhe faltariam adjectivos diversos para responder a quem aqui deixou testemunho.

Acontece que J. Rentes de Carvalho não é apenas um cavalheiro, é um homem generoso. E envia-nos uma velha história de melancolia (as palavras são do autor) como forma de agradecimento a todos os que aqui passaram por estes dias.

A mim, mais não resta que respirar fundo e passar rapidamente ao que interessa. Minhas senhoras e meus senhores, regalemo-nos então.



UMA TARDE NA FOZ


 Chama-se-lhe paixão, mas aos quinze anos não pode ser. Não é. Antes uma espécie de estado febril, tontura das hormonas, pois fora um ou outro poeta ninguém em seu juízo se apaixona por um retrato. Ele tinha-se apaixonado. E nem era retrato, mas a gravura dum anúncio, uma rapariga no alto de um escadote, segurando numa mão uma lata de tinta, na outra um pincel. 
- Burrice! – troçaram os amigos. – Uma gaja num escadote? Olha-se pra cima e que se vê? Uma lata? 
Ténis brancos, jeans, blusa quadriculada de azul e creme, um belo rosto a resplandecer alegria, olhos azuis, cabelos de ouro. Começara pelo fascínio, mas não tardou a sentir-se embruxado. Colada na parede, a página dava a ilusão de que se encaravam. Falava-lhe. Um dia arriscou o primeiro beijo. Depois, longas conversas sussurradas, diálogos em voz alta, suspiros, a mãe no corredor a perguntar o que era, se queria alguma coisa. Não tem ideia do que aconteceu à gravura, de como ou quando aquilo terminou. Muitos anos, muitas vidas depois, muitas águas passadas, Ilse iria dizer-lhe que em alemão havia uma palavra bonita para esse sentimento, Jugendliebe. Estivera tentado a lembrar-lhe que havia uma expressão semelhante em inglês, por certo também noutras línguas, mas Ilse não era para lições e, fora a cama e a música, enfim... Águas passadas. Ilse! A Ilse de Munique! A juventude são instantes, não são? 

Está numa esplanada na Foz, encarando o mar. Fim de tarde, domingo sereno. Alheado do burburinho, interrogando-se de que fundos terá vindo a recordação. Com esforço, sim, talvez conseguisse lembrar as feições de Ilse, as doutras amantes, as das mulheres com quem tinha casado, mas a rapariga no escadote surgira-lhe ali sem razão que adivinhasse, misteriosamente fiel nos detalhes, nas cores, a gravura nítida como que projectada num ecrã. 
Burrice, de facto. Sorriu à memória dos amigos e das ocasiões perdidas, melancólico com o sentimento de que a certo ponto da vida tudo parece estagnar. 
Passou as mãos pelo rosto e esfregou os olhos, ao mesmo tempo que sacudia ligeiramente a cabeça, exorcismo dos pensamentos que não queria ter. 

A mulher deteve-se e encarou-o brevemente, dando ideia de julgar reconhecê-lo. Viu-a depois hesitar na escolha, olhando em redor como se procurasse alguém, para finalmente, escolher a mesa fronteira. 
Bela mulher. Modo desenvolto. Ano mais, ano menos, a idade indefinida entre os trinta e cinco e os quarenta. Cabelo preto, a fazer moldura a um rosto sereno, descendo sobre os ombros, decote elegante, um colar assimétrico de grandes bolas negras. Vestido longo, lilás escuro, o ar de quem dali a pouco iria a uma festa. Olhos expressivos. 
Em tudo tão outra, e mesmo assim a sua imagem parecia sobrepor-se à da recordação de adolescente, como se entre ambas se fizesse uma simetria. Seria a forma do rosto? A vivacidade do olhar? O indefinido que marca certas pessoas? A estranheza que nos toma inseguros cada vez que a realidade parece diluir-se? 

À rapariga da gravura chamara Esther, inconscientemente. Talvez porque nesse tempo Esther Williams era a sua actriz favorita. Mas Esther não serviria para a bela estranha. Ali, junto do mar, antes o clássico Maria, a tradução latina da Vénus grega. 
E por que não Marina, que lhe recordaria Moscovo, onde fora feliz? Mariana? Marisa?... 

Distraído a fabular, só deu conta do homem quando ele já se curvava a beijá-la na face. 
Bem proporcionado. Atlético. Não lhe via o rosto, mas tudo nele dizia juventude. Filho? Amante? Ela levantou-se e ele – carinho? paixão? – passou-lhe o braço pela cintura. 
Ao vê-los afastar-se desvaneceu-se a memória antiga, como se naquele instante a gravura finalmente se despegasse da parede onde, adolescente, a tinha colado.

19 agosto 2013

Pipoco vs J. Rentes de Carvalho, Grand Finale

Caro Dom Pipoco,

Surpreendente, a elegância antiga das suas frases, generoso o modo como, tendo vencido, se dá aparências de derrotado e propõe tréguas.
Ao saber que o acaso me fizera aventurar no seu território, logo voz amiga me preveniu: "Não te metas com o Pipoco! Parecendo todo delicadezas estraçalha-te antes de poderes dizer ai. E se desdenhar de fazê-lo, encarregam-se do serviço as amazonas que o veneram, que as tem às centenas, dedicadas como as que rodeavam o ditador da Líbia, ou as que nas tribos africanas impedem que se toque no soba." Sussurrou-me outra: "Sai enquanto é tempo. Esse Pipoco e a turba de damas que nele tudo adora, desde a postura chique e o fraseado oitocentista ao corte das suas camisas, da cor das peúgas à distinção das suas gravatas, são haute-volée, gente capaz de vergonhosamente te escorraçar a pontapés no derrière."
Dou-me por feliz de ter escapado com ligeiros arranhões e aprendido que de facto é bem verdade, um macaco pode invejar os de cima, mas deve saber acomodar-se no galho que lhe cabe.
Isto dito, e acenando já a despedida, confesso que me sinto privilegiado pela oportunidade que me deu e o que de elegantes dizeres e ademanes consigo aprendi. No que respeita um eventual encontro tenho ideia que dificilmente acontecerá. Além de tímido por natureza, sei que tropeçaria na forma e nas fórmulas, iria dar-me em espectáculo, risco que prefiro não correr.
Mas com gosto retribuo o grande abraço com que me honrou.

J. Rentes de Carvalho

18 agosto 2013

De como Pipoco pede clemência a J. Rentes de Carvalho

Meu excelente J. Rentes de Carvalho, quase me amofinei por ter o meu caro desmontado com tanta precisão a clássica manobra de diversão que é o pavoneamento. Saiba o meu caro que, escasseando-me a arte, mais não me resta que trabalhar a forma, esperando que ninguém note que estou sempre a escrever o mesmo post.

Aqui chegados, quero apelar à sua benevolência e propor-lhe tréguas. Conceda-me o meu caro uma saída airosa, que me permita fazer de conta que me bati com galhardia. A história que aqui se passou contá-la-ei aos netos, hei-de dizer-lhes que houve um ano em que pedi que me oferecessem Rentes de Carvalho no dia do meu aniversário e aconteceu mais do que isso, aconteceu que Rentes de Carvalho, ele mesmo, decidiu estar à conversa comigo e respondeu-me coisas de pasmar ao que lhe perguntei, direi que foi um tempo feliz da minha vida, um tempo deliciosamente feliz.

As coisas são como são, meu excelente Rentes de Carvalho nestes dias quase hipotequei a minha postura snob-chic, laboriosamente trabalhada durante o tempo que dura este blog, quase confessei que prefiro arroz de cabidela ao risotto, quase baixei as defesas. Valeu bem a pena, afinal talvez isto não sejam só blogues.

E talvez um destes dias eu me apresente numa dessas filas para lhe pedir uma dedicatória num livro seu, hei-de dizer-lhe, quando o meu caro, com bons modos, me perguntar a quem dedica o livro, que escreva "Para o Pipoco Mais Salgado", o meu caro há-de ajeitar os óculos, olhar-me nos olhos, havemos de nos dar um abraço e o meu caro logo decidirá, pela intensidade do abraço, que eu, apesar de lisboeta da beira-mar, não sou má rês.

Um grande abraço deste sempre seu Pipoco Mais Salgado

PS - Uma espécie de amiga pede-me para lhe dizer que a frase com que terminou o ultimo post é uma das coisas mais bonitas que ela já leu, mas que no extremo pode ser uma justificação demasiado valiosa para as mentes perversas.

17 agosto 2013

Judite de Sousa...

...entreviste-me a mim!
Por Deus, pondere um dia destes entrevistar-me a mim, caramba...

(ia ser tão, mas tão inesquecível para si!)

16 agosto 2013

De como J. Rentes de Carvalho, tranquilamente, vai ganhando vantagem na contenda

Caro Dom Pipoco,
O introito da sua anterior missiva também se me assemelhou longo, mas sorri e desculpei. Na juventude facilmente nos deixamos arrastar pelo anseio de "fare la bella figura", pecadilho meridional que, na prosa, imita o esforço do pavão a soprar excessivamente para que sobressaia o colorido inchaço da plumagem. 

Tarefa pesada a de responder às muitas perguntas que faz, sobretudo porque as espalhou pelo texto, mas deixe que reaja primeiro à atitude dos seus seguidores. Ao contrário do que aventa, eles nem por sombras imaginam o jovem e destro Dom Pipoco ferido, derrotado, mas seguem a intuição e há muito "farejaram" de que lado sopra a aragem da vitória.
Graças a Deus evito queixumes, nem me sinto inclinado a imitar a figura célebre que dizia "Sou apenas um pobre homem da Póvoa de Varzim", ou o manhoso Fernão Mentes Minto, lançando um "Pobre de mim!" a cada duas páginas da  "Peregrinação".
Para lhe ser franco, admiro e invejo, pois creio que, mesmo em modesta escala, deve ser de grande conforto sentir o incondicional apoio que multidões reservaram a Gandhi, à Madre Teresa de Calcutá e aos Beatles.

Isto dito, passemos então à sua curiosidade. Pelo que sinto, o que sei, e me parece, o meu destino é idêntico ao de milhares de compatriotas que, ao longo dos séculos, por montes de razões se viram em terra estranha e nela deixaram marca.
Seria hipócrita se escondesse a satisfação que dá saber que nos Países Baixos, vai quase meio século, embora escrevendo apenas na língua-mãe, me considerem um bom escritor holandês, me tenham como tal em críticas, estudos, enciclopédias, bibliotecas, no "Letterkundig Museum" (Museu da Literatura) de Haia e em muitos milhares de estantes domésticas. Mas o descaso, o esquecimento, o desdém, a sobranceria do trato, deixam marca. Se de Lisboa e arredores me chegam cumprimentos, logo se aviva a lembrança de quando diziam que eu não sabia conjugar verbos nem escrever direito, que talvez nunca chegasse a aprender como se cria um personagem. E de que nos quarenta e tal anos seguintes me descartaram, deram-me por defunto e enterrado.
Dói? Não. Entristece. Cansa. É muito o esforço para impedir que o azedume cresça ou o sarcasmo leve a melhor, pois nesse particular nem a bonomia ou o sorriso tenho de natureza, são atitudes que me ensinei. Tal como canta o samba do clássico "Batatinha", também eu posso dizer com verdade: "Meu desespero ninguém vê, sou diplomado em matéria de sofrê."

Carlos da Maia não respondeu à curiosidade de João da Ega, nem provavelmente o faria se o amigo continuasse vivo. A ideia que me vem é que, num tempo ainda sem televisão, internet ou Facebook, e chegado àquela idade, tendo gozado o que havia para gozar, visto o que havia para ver, Carlos da Maia, homem de posses, comprou uma versão duriense do "Petit Trianon" de Maria Antonieta, descobrindo a contragosto que ninguém foge ao seu destino, nem a simplicidade é o que parece. A confidência que em tempos me fez um Diogo Calejo, sobrinho do "Tormenta", antigo feitor da Quinta da Pestaninha, levanta uma curiosa hipótese: mau grado os oitenta anos que então tinha, Carlos da Maia parece ter decidido a compra da propriedade de um momento para o outro. Dizem as más línguas que perguntou se aquela rapariga Felisbela lá trabalhava, e fechou o negócio. Dizem. Sugerem. Neste mundo há muita aleivosia.

Sobre o "Ulysses" poderia alongar-me, mas de forma resumida encontrará aqui o meu sentir: http://tempocontado.blogspot.nl/2013/06/birras.html Embora na juventude fosse leitor obsessivo, para aguentar não uma, mas duas leituras de "Ulysses", feito heróico, muito contribuíram os estudos de Hélène Cixous e a biografia de James Joyce de Richard Ellmann.

E agora, satisfazendo a sua última curiosidade: nos três primeiros meses o "Tempo Contado" teve caixa de comentários. Infelizmente, eram tantos os  tarados que lá entravam, que logo a fechei. Acontece a poucos, como a Dom Pipoco, que os  comentadores sejam aquele tipo de gente com quem dá gosto conviver e larachar. Dá-se também o caso de que tenho má sina. Não é só na caixa de comentários, é na rua, nas lojas, nos cafés, nas repartições, nas filas do autocarro, nas salas de espera: bêbedo ou candidato a Rilhafoles que ande perto, vem direito a mim como se tivesse bússola e eu fosse o norte. E assim me condeno à conversa de sentido único, abrindo rara excepção para os comentadores de provado juízo e boas maneiras.

Creio que chegamos ao fim. Pareceu duelo, mas foi teatro e, pela minha parte, o que neste palco afirmei, sou bem capaz de com igual à-vontade desdizê-lo amanhã. Nada obriga aquele que por cima do casaco veste o sobretudo da fantasia.
Saiba-me grato e aceite um cordial abraço.

J. Rentes de Carvalho

Disso, do hábito e do monge

Nos dias da semana, dias de fato cinzento, camisa branca e gravata azul, os tipos do banco que quer vender cartões de crédito em centros comerciais não despegam, "posso roubar-lhe só um minuto?", que não, que tenho pressa, talvez um destes dias, "mas é mesmo só um minuto, e oferecemos uma máquina de não sei quê, e ...".
Ao fim de semana, óculos escuros, barba de três dias, calças de ganga e t-shirt, passo devagar junto dos tipos do banco que quer vender cartões de crédito em centros comerciais, com tempo, rio-me para dentro quando os tipos do banco que quer vender cartões de crédito em centros comerciais olham para o outro lado, nem uma tentativa de me roubar o tal minuto de atenção.

15 agosto 2013

De como Pipoco ousa perguntar coisas a J. Rentes de Carvalho

Meu caro J. Rentes de Carvalho, picou-me deveras o remoque à boa gente que por estes lados manifesta, algumas com desmesurada efusividade, é certo, apoio à minha maneira de ver as coisas. Pois não vê o meu caro que essa boa gente, intuindo o resultado da contenda, não fazem mais que apoiar espiritualmente, reforçar o ego, apoiar quase maternalmente aquele que, é bom de ver, mais carece de gentilezas para não esmorecer?

Fala-me o meu caro dos trabalhos que dá sair dos cânones. Eu, que pouco sei das coisas da vida, cuido saber do que fala. Aprendi que de pouco vale fazer de conta que somos o que esperam que sejamos, nunca agradaremos. Veja o meu caro o caso que gentilmente aqui nos trouxe, com o seu velho chaço, nem uma bandeira verde e vermelha pendurada no retrovisor, nem rodadas de tinto da Cooperativa de Valpaços. Veja agora o Valadares, o oposto, bela carripana, casa de assombrar, vinho a rodos. Nem a si, pelo que conta, nem ao Valadares, pelo que me contou, as boas gentes da terra concedem os seus favores à primeira, sem reserva. Assim, meu caro J. Rentes de Carvalho, mais vale ser o que somos e não perder muito tempo a pensar que podíamos ser de outra maneira, que sendo como somos, sicrano não nos apreciou com gostaríamos, fôssemos assado e sicrano ficaria apaziguado, mas, lá está, sairia beltrano da sua quietude e nos diria que assim não podia ser. Sendo como somos e não gastando o nosso bem mais precioso, o tempo, aprendi com o tempo que nada é mais precioso que o tempo, com aquilo que são as não-coisas, e dormimos melhor, com mais cabeça para ler bons livros e estar em boas companhias, isto, claro, se não nos aborrecermos por nos apelidarem de arrogantes, antipáticos e sobranceiros.

Porque o introito já vai longo e o que me interessa verdadeiramente é perguntar-lhe do que não sei, porque o meu caro me fascina em quatro dimensões, a do homem que escreve de forma a que a leitura se me torna compulsiva (nada de estrondoso, aconteceu-me igual com o Dan Brown...), a do Português que não se esqueceu de ser, apesar do mundo, apesar de tudo, a do emigrante, o que olha de fora, sem sobranceria nem superioridade bacoca e, finalmente, a do mais velho, aquele a quem o tempo lhe deu a tranquilidade e a sabedoria para ser aquilo que nós, os que gostamos de pensar que o conhecemos, temos a certeza que é.

E assim, meu caro, desejando com todas as minhas forças que lhe apeteça satisfazer-me a curiosidade, gostava de perguntar ao autor por que razão os Pipocos Mais Salgados desta vida, tipos que acham que estão sempre informados, só agora, tão tarde, se dispõem a lê-lo, embasbacados pela magia, irritados por não terem sabido mais cedo, picados (o que eu gosto desta palavra...) com aqueloutros que, impantes, nos dizem "Rentes de Carvalho? Não conhecias?...". Gostava de perguntar ao autor por que razão Carlos da Maia foi para aquele desterro, afinal não o chegou a dizer a João da Ega, gostava de perguntar ao autor se já leu Ulysses, de Joyce, e, se sim, como se faz para ler até ao fim, gostava de perguntar ao autor porque raio não podemos deixar smiles, e escrever "LOL" e outras menoridades na caixa de comentários do Tempo Contado.

14 agosto 2013

De como o excelente J. Rentes de Carvalho quase deixa Pipoco sem fala (Quase...)

Logo me tinham acautelado. Não fosse jogar as peras com quem de certeza levaria vantagem na solidez dos argumentos, na ciência da vida e no rendilhado da prosa, na capacidade de distinguir as castas de um Romannée-Conti, de falar com gastronómico deleite e fingida modéstia acerca da conjugação do vinho e o rosbife. Estava eu, pois, de aviso, mais ou menos preparado para reagir de forma adequada e não deixar que o seu florete me tocasse as partes vitais.

Com o que não contava, apresentando-me sozinho para o duelo, era que Dom Pipoco viesse acompanhado de sequazes aos vivas, comentando em seu favor, e daquela dama que, descaradamente, logo lhe atribuiu dois pontos de vantagem. Bem mo tinham dito e bem se vê, a luta é desigual entre os que manejam o florete com destreza e aplomb, e os que, se assim se pode dizer, em questões de esgrima continuam no paleolítico da moca e do estadulho.

Permita, pois, que faça um intervalo. Não vou reagir ao malicioso toque do transmontano sabido nas malas-artes da sueca ou na matança do porco, a que alude, mas desejo apontar que nunca a minha gente desceria a escolher um Dão, fosse ele encorpado. Desconhece Vossência as pérolas vinárias do nosso Douro? Nosso, sim, da gente cá de cima, pois mal vai se ignora as fronteiras que nos dividem.

Confesse-se touché e passo adiante, agradecendo a informação de que há uma classe de alfacinhas que não usa certas expressões. Parece-me de uma bizarria fin de siècle. Então nada os pica? Não picam? São tudo punhos de renda, veludos, maciezas? Pois olhe, a mim é por demais o que me pica e, sobrasse tempo, ficaria dias a resmungar uma lista em que a por si mencionada "tribo da faixa do meio" seria item menor.

Mas bem verdade é que, emigrante, tenho com o emigrante compatriota a mais curiosa das relações, e os que conheço sempre foram prontos a fazer-me sentir outcast, atitude que nada separa da discriminação ou da xenofobia pura e simples. Ao longo das décadas, aqui na Holanda a maioria deles habituou-se a olhar-me de viés. Por não alinhar com ideologias em moda ou ultrapassadas, não ser de associações, círculos, partidos, cliques ou claques, ter pouco amigos, não querer favores. Felizmente a situação agora é outra, porque a rapaziada que chegou nos anos recentes nem sabe que existo. Grande paz.

Mas tome os emigrantes da minha aldeia e arredores. Para a boa gente que me viu crescer sou uma desagradável anomalia: não enriqueci; em vez de construir maison vivo na casinha modesta que o meu avô materno fez com as próprias mãos; ausento-me na festa do orago. Mas sobretudo, sobretudo, magoo-lhes a sensibilidade com os carros. Apenas dois comprei novos, um esbanjamento, o resto é em segunda mão, ando com eles aos cinco e seis anos. A vizinhança dói-se, aponta a ferrugem nos pára-choques, as amolgadelas nos pára-lamas, o desleixo de só os lavar quando a poeira dificulta a visão. Então não me poderia dar um Touareg, como fulano? Um Jeep Grand Cherokee? Um Mercedes? E porque raio ando de lá para cá, a mudar de casa e de país cada três meses?

Explicações não dou, que a ninguém as devo, nem eles compreenderiam, mas imagina Vossa Excelência, Dom Pipoco, que por sair dos eixos correntes, me fazem sentir estranho na própria terra? E por essas mesmas razões outros me fazem sentir bem na terra alheia? Por menos se perde a cabeça, mas serei o último a pretender que a minha ainda está onde pertence, ou que funciona a contento, pois muito a tenho ocupado no cansativo exercício de ouvir e calar, compreender, esquecer, ir adiante tentando não olhar para trás.

Se a tivesse levantava agora a viseira, recuava um passo e, em despedida, tentaria imitar o elegante meneio de quem, como Dom Pipoco, sabe de esgrima.

Cordialmente seu,

J. Rentes de Carvalho

Podes...

...perfumar-te com Anais-Anais, perguntar se não servem sangria nos restaurantes a que te levo, pintar cada unha de côr diferente, gostar de sushi industrial, citar de cor Paulo Coelho, enviar mensagens sobre felicidade, daquelas que um homem é atropelado por um camião de seis rodados se não enviar para duzentas pessoas em dez minutos, podes gostar do Algarve em Agosto, de rum com coca-cola, podes arrastar os pés, gostar de Bublé e dos Divo, mas, por quem és, não me respondas que "isso é relativo" a uma pergunta de "sim" ou "não"

13 agosto 2013

Por um mundo melhor

Cinema sem pipocas nem refrigerantes de beber com palhinha, televisão sem as vozes da Cristina Ferreira e da Júlia Pinheiro, livrarias sem livros de auto-ajuda, gin sem pepino a flutuar, café sem açucar, blogues sem vernizes para as unhas nem fotografias de gatinhos, Sporting sem aqueles centrais, mulheres sem aqueles tops que elas têm que estar sempre a puxar para cima nem soutiens batoteiros, homens sem camisas de manga curta, concertos de música exacta sem pessoas a aplaudir fora de tempo, lojas sem empregadas com cuecas fio dental.

Ontem na exposição da rapariga dos crochets a envolver animais de louça

Na escadaria que dá acesso ao segundo piso toca uma ária conhecida. A rapariga adolescente perguntava à senhora loura com pulseira no tornozelo que música era aquela e, enquanto eu respondia mentalmente "Quand je vous aimerai?..., Carmen, Bizet", a senhora loura respondeu que era a música do anúncio daquele detergente para o chão, ai, como era o nome do detergente? Por um par de segundos pensei na quantidade de acidentes terríveis pode acontecer em escadas inclinadas como aquelas. Depois reflecti, subi as escadas até ao cimo e estanquei diante da televisão sintonizada no festival da canção de 1982 e alguém nos estava a dar dois pontos, two points, deux points.

12 agosto 2013

Que estás a fazer neste momento, Pipoco?

Pipoco também foi ver a Gaiola Dourada

Se calhar somos mesmo aquilo, mansos, sempre prontos a dizer que sim senhores, que estamos cá para isso, sorrimos enquanto se nos revolta o estômago, se calhar só ganhamos coragem para dizer que basta, que merecemos respeito quando ganhamos a taluda e, forrados com o poder que achamos que o dinheiro nos dá, falamos então grosso, como vimos fazer aos outros, aos que tinham dinheiro antes de nós. Se calhar somos mesmo assim, levamos a marmita para hotéis de luxo e compramos atrelados para os Cayennes, escolhemos mal as roupas, temos vergonha de ser quem somos, gostamos de bola na televisão e de coisas penduradas no espelho retrovisor.

Talvez sejamos tudo isso, mas, por Deus, não somos gente de beber Ricoré...

Meu caro J. Rentes de Carvalho...

... não sei por que feliz alinhamento de astros tenho o privilégio de estar aqui à conversa com tão notável cavalheiro mas a verdade é que me habituei a que as minhas recordações mais felizes surjam assim, de acasos estatisticamente improváveis.

Noto, com agrado, que o meu caro é um optimista dos graúdos, já que cuida que o território onde se movimenta o alfacinha é de tal maneira grandioso que se espraia pela tão grande lonjura que vai de Loures (onde diabo será Loures, caramba?...) até ao Terreiro do Paço. Seria o mundo um lugar melhor se assim fosse, meu caro J. Rentes de Carvalho, mas a verdade é que encontrar um alfacinha para esses lados, tão além da sua zona de conforto, como se diz agora, é tão provável quanto encontrar um trasmontano além de Quintanilha.

O que é notável no alfacinha, meu caro J. Rentes de Carvalho, é que, com epicentro no Terreiro do Paço, sendo que falamos do epicentro de uma meia cirunferência, a religião do alfacinha não permite que se considere o que está para além do rio como seu territrório natural, não se movendo para Oeste senão para jogar um par de horas na roleta do Casino do Estoril ou almoçar um recomendado robalo no Porto de Santa Maria, tudo o resto desenvolvendo-se até às Avenidas Novas, com o Estádio de Alvalade como limite a norte, e até Santa Apolónia, para apanhar parte de Alfama que interessa, o que é notável, dizia eu, é que, apesar deste espartilho geográfico, anos e anos de transmissão de saberes resultaram num aprimoramento de qualidades tal que permitem que o alfacinha, não dominando mais que dois saberes, três, nos casos de alfacinhas mais dotados, quatro no caso deste que lhe escreve, transmitindo-se os saberes fundamentais por osmose, de pai para filho, convida aqueles que com os alfacinhas se confrontam a assumir de imediato uma posição respeitosa, conveniente, que permite em última análise ao alfacinha, parco de recursos, assumir o comando e liderar por improvável aclamação.

Veja a escolha do vinho, meu caro. De um lado um trasmontano pleno de saberes, um homem que sabe construir uma casa com as próprias mãos, que domina as malas-artes de um bom jogo de sueca, que diferencia se hesitar uma macieira de uma oliveira, que sabe assar um porco inteiro ou em que mês se semeiam as batatas. Do outro, o alfacinha, que não sabe senão conjugar o vinho certo com rosbife au meunier. O trasmontano tenderá a escolher um Dão encorpado, uma mistura de casta malvasia e aragonês. O alfacinha, diplomaticamente, tenderá a sugerir um Romanée-Conti, entusiasticamante aprovado pelo escanção do restaurante, escavacando assim o ego do trasmontano. Daí em diante, bem poderão falar de astronomia ou de matemáticas aplicadas, de arte bizantina ou do modo como operavam os sarracenos, que vingará sempre a visão do alfacinha, de tal forma o trasmontano está ainda perturbado com a sua desajustada escolha inicial.

Seja como for, meu caro J. Rentes de Carvalho, e certo que me perdoará a ousadia, o que eu gostava mesmo de saber é o que ainda o pica (para usar uma sua expressão que nós, alfacinhas de certa classe, não usamos). O que pica um homem com mundo, um homem que já viveu tantas vidas, um homem que fez tantas coisas e tão diferentes que alguns de nós, mesmo os alfacinhas de certa classe, não desdenharíamos fazer igual?

(e, à laia de segunda pergunta com subliminar encadeamaneto na primeira, muito gostaria eu de saber como lida o meu caro com a tribo da faixa do meio, se por essas lonjuras que calcorreia também há disso, dos da faixa do meio, e, não sendo muita maçada, se a sua preferência por faixas de autoestrada sofreu alterações ao longo dos tempos, se a maturidade o levou a escolher faixas preferenciais que não imaginava possíveis nos tempos de maiores efusividades próprias da juventude, se a música que o meu caro escuta no carro o impele para uma ou outra faixa).

Se o meu caro me julgar inconveniente, basta fazer-me aquele olhar que eu faço ao Ruben Patrick quando desejo que o rapaz vá à vida dele e não me aborreça com menoridades.

Aceite um abraço, saiba que o abraço está no meu topo de afectos.

Pipoco Mais Salgado, sempre a considerá-lo.

11 agosto 2013

Às vezes, quase nunca, isto é mais que só um blog

Exmo. D. Pipoco,

Como avisadamente desistimos de terçar adagas, permita que eu, sem paixão, tente esclarecer donde vem o prurido que me aflige cada vez que esbarro com o que me parece a altaneira condescendência lisboeta.

Aquele seu incómodo acerca do emigrante que, desleixado, roda na faixa central dos IPs, foi o rastilho de uma impensada e apressada explosão de humor. Tivesse eu a sensatez de ponderar, reflectir, sabiamente pesar prós e contras, de meter a mão na consciência e depois a viola no saco, encontraria um sem-número de ocasiões em que o comportamento do emigrante me fez e faz perder a cabeça, esquecer as conveniências, o amor do próximo, dar urros, envergonhar-me de ser compatriota, fingir que não falamos a mesma língua nem somos do mesmo chão. Como poderá verificar aqui http://tempocontado.blogspot.nl/2013/01/exodo.html ainda recentemente ele me entristeceu, e outros momentos poderia apontar de maior tormento.

Todavia, o que provavelmente me picou não foi ver que o estimável D. Pipoco zombava do pai de Sandrine, Danielle, Jeannot ou Patrick, mas discernir no texto, aliás de cuidada e elegante prosa, aquele tom altaneiro e desdenhosamente moqueur que atribuo ao lisboeta de certa classe.

Não se zangue ainda. Não comece a franzir o sobrolho. Permita-me que explique. Desde há muito, andaria então pelos sete, oito anos quando comecei a ler a história pátria, e depois, já rapaz, num dia de Setembro de 1947, subindo pela primeira vez o Chiado, criou-se em mim a estranha noção de que Portugal não se divide em províncias, mas se compõe de três partes, desiguais em tamanho, importância, mentalidade e comportamento. O Norte fica acima do rio Douro, e meto nele as Beiras que olham para Castela. O restante, da margem esquerda do nobre rio até à costa algarvia, é tudo Sul. Temos depois o quadrilátero que, grosso modo, vai de Loures ao Cabo da Roca e do Cabo Raso ao Terreiro do Paço.

Aí reside o problema. Não necessita Vossa Senhoria, D. Pipoco, de formular argumentos para rebater a minha ideia. Eu próprio estou ao corrente de que cada cabeça sua sentença, e a cada razão se pode opor outra. Tão-pouco irei tecer loas às virtudes da gente do Norte, ou criticar a do Sul, que de facto pouco conheço. Mas tenho de ser franco: o alfacinha arrasa-me. Sinto-me mesmo obrigado a confessar que até os alfacinhas amigos, uns quantos, me fazem perder as estribeiras.

Creio que não se dão conta, mas têm aquele jeito de se ver diferentes, sofisticados, exprimindo-se num vocabulário que, de peculiar, me traz à lembrança a lengua das terras dentre Sendim e Miranda.

Refinam na gastronomia, nos vinhos, conhecem paragens exóticas, mas desdenham da vizinhança do quadrilátero. Para eles, Marão e Marrocos é o mesmo, têm ideia de que vive por lá uma gente tosca com o hábito inconcusso (vocábulo que a um lisboeta ouvi) de a páginas tantas, como a cegonha ou o salmão, ir de jornada sem cuidar da rota e ignorando o destino. Anos depois, também como o pássaro e o peixe, esse bom povo, que entretanto desovou hábitos de impertinência e descuido, barulheira e bazófia, ressente a urgência de visitar o ninho. Com o resultado que Vossa Excelência elegantemente apontou, e com o qual eu desastradamente me assanhei.

Temo que não explico o bastante, nem as minhas desculpas soam como desejaria, mas acho melhor parar, não vá entusiasmar-me e meter ainda mais os pés pelas mãos.

De V. Exa, atento, venerador e obrigado,

J. Rentes de Carvalho

Os Novos Maias,ou lá como se chama aquilo (IV)

O meu exemplar vinha com Zambujal truncado. Só dez páginas de Zambujal. Se calhar, é um sinal...

10 agosto 2013

Os Novos Maias, ou lá como se chama aquilo (III)

Li três vezes. Esmiucei. Ao terceiro dos Novos Maias a coisa está mais composta. Aborrece-me verdadeiramente, queria ter coisas a apontar, afinal Rentes de Carvalho escreve que "Gente da serra não tem as mariquices da beira-mar, nem precisa de ficar tuberculosa para fazer versos". Mariquices da beira-mar?... Pfff. Mas nada, nem telemóveis que tocam em consultórios de um tempo em que ainda havia império Austro-Húngaro nem Carlos da Maia enfiado em ambientes bizarros.

Carlos da Maia e João da Ega são agora credíveis, Rentes de Carvalho coloca-os num espaço onde acreditamos que podiam ter sido colocados e falam do que supomos poderem ter falado. Vêmo-los ambos falhados, como esperávamos, de acordo com as Escrituras. Carlos da Maia "nada fez com o estudo da Medicina. Nada gerou, criou ou plantou. Nada escreveu", Ega conclui que "ter saúde, inteligência, possuir fortuna e ser um inútil, é crime".

Há falhas, claro que sim. Nada justifica que numa casa de homens de bem não exista uma garrafa de Chartreuse. E, havendo Bénédictinne, não se me afigura que João da Ega tivesse escolhido Cointreau. Pormenores que não deslustram, Rentes de Carvalho consegue a fórmula de escrever como Rentes de Carvalho e quase parecer que estamos a ler Eça. Notável, só acontece aos melhores.

Por aquilo das mariquices dos da beira-mar e por não haver Chartreuse sete em dez. Vá, sinto-me generoso: oito em dez, pelo final.

09 agosto 2013

Mas os homens não choram

Ver o pôr do sol no mar de Patmos, tomar consciência que a mulher da nossa vida nunca será a mulher da nossa vida, passar o portão de Dachau, perder o melhor amigo, perceber que a Ilsa não terá senão Paris, ver no estádio Portugal perder uma final, ver os esboços de Guernica em Guernica, fechar os olhos e ver (sim, ver) Baremboim a dirigir, escalar calcário e chegar lá acima, beber um Bellini em Veneza, chegar a Compostela, beber um Barca Velha que o nosso pai guardou para nós durante vinte anos.

08 agosto 2013

E tu Pipoco, onde arrumas os teus Rentes de Carvalho?

As pessoas que conheço arrumam os livros sem preceito, contentam-se em arrumá-los por alturas, por cores, os mais preocupados arrumam-nos por autores, portugueses de um lado, estrangeiros do outro, brasileiros e africanos a meio.

Espanto-me sempre com este desleixo, toda a gente sabe que não se deve deixar Saramago ao lado de Lobo Antunes, nunca se sabe o que pode acontecer durante a noite na estante, podem acontecer refregas graves e depois, é sempre assim, ninguém tem a culpa, ninguém sabia, ninguém é responsável. Sousa Tavares jamais deve ficar sequer na mesma estante dos livros sobre a história do Benfica ou ao lado do livro do blog dos Gato Fedorento, é criminoso deixar Sherlock Holmes ao lado de Jaime Bunda, os argentinos Borges ou Cortazar não podem ficar junto dos brasileiros Jorge Amado ou Machado de Assis, As Pupilas do Senhor Reitor não podem ficar perto d'O Crime do Padre Amaro.

Já Tintim pode ficar ao lado de Corto Maltese ou dos livros do Gonçalo Cadilhe, O Gineto de Esteiros fica bem arrumado ao lado de Pedro Bala d'Os Capitães de Areia e Joyce não se dá mal ao lado de Truman Capote.

Arrumar os livros do mesmo autor ao lado uns dos outros também pode ser um problema. Ninguém pensa nisto, tenho que ser eu a pensar em tudo, mas a verdade é que o Primo Basílio pode perfeitamente desinquietar Maria Eduarda se estiverem muito próximos e Carlos da Maia pode sempre convencer Amélia a passar um bom par de horas no Ramalhete e não se sabe o que fará Jacinto se lhe aparecer pela frente o Conde de Abranhos.

(sim, voltei a sonhar com Lamborghinis roxos)

07 agosto 2013

Meu excelente José Rentes de Carvalho...

... as coisas não são exactamente como o meu caro diz que são. Eu, que adivinho ter o tempo contado para que um destes dias eu própro seja mais um emigrante, eu que já estive fora deste país o período suficiente para ver as coisas com aquela perspectiva de quem, vendo as coisas sem estar embrenhado nelas, percebe melhor o que não fazemos bem, eu que passei o melhor do meu tempo de férias numa terra que tinha um rio ao fundo e terras à volta e festas onde me calhava sempre em sorte dançar com as filhas de emigrantes mais bonitas, aprecio genuinamente os méritos dos que, por opção, por estar zangados com esta terra, por não se sentirem parte daqui, por fuga ao que quer que seja ou por não terem aqui o sustento que merecem, emigram. Não somos, nunca somos, uns mais que os outros, isso é coisa que se aprende cedo e que, em não se aprendendo, a vida se encarrega de nos escarrapachar, mais cedo ou mais tarde, quase sempre mais cedo, que é para termos oportunidade de ainda viver em paz com essa verdade. Por isso, meu excelente José Rentes de Carvalho, que venham abraçar os seus, que celebrem estar vivos, que paguem rodadas a torto e a direito, que chamem pelos filhos Patrick e Sandrine, que não resistam a enfiar-nos pelos olhos dentro a prosperidade, que falem alto para que ouçamos bem o quão melhor as coisas são por lá, mas não, deste lado não há nojo nem discriminação. E, já agora, meu excelente José Rentes de Carvalho, os emigrantes não são versão de coisa nenhuma, muito menos de nós próprios. Pois não temos nós mundos tão diferentes, voltas da vida tão diversas, experiências tão díspares, que, no fim de contas, nos levam a essa riqueza de não termos que ser versão de ninguém, que nos dá essa formidável liberdade de escolher quem gostamos a valer e aqueles que podemos bem passar sem eles?

06 agosto 2013

Às vezes recebo mails

Ele há dias em que recebo publicidade na pipoqueana caixa de correio electrónico. Divirto-me sempre com o que os relações públicas acham que eu gosto.

Hoje foi dia de Planta Manteiga. Alguém no mundo das relações públicas faz um trabalho de casa tão profundo que estabelece uma relação directa com a minha dissertação sobre o quotidiano, cuidadosamente vertida em quarenta e nove anos de blogs, e Planta com sabor a manteiga. Que podiam ter inventado uma margarina com sabor a marshmallows, a couves de Bruxelas ou a amêndoa amarga, podiam sim senhores. Mas não, inventaram uma margarina com sabor a manteiga, é coisa parecida com vinho de pacote com sabor a Pera Manca ou hamburgers com sabor a posta mirandesa.

O press-release diz que é difícil resistir a uma fatia de pão barrada com Planta sabor a manteiga. Eu digo que é facílimo, tão fácil como resistir a um copo de Pisang Ambon, a um livro de Paulo Coelho ou a cerveja morna. Facílimo.

Informam-me que a coisa se vende em embalagens de um quilo. Um quilo de Planta sabor a manteiga em troca de quase cinco euros e ainda assim é com desconto. Cinco euros que eu trocaria de bom grado por oito cafés Camelo. Seis imperiais Super-Bock.

Ah, esperem, dizem-me que há promoções da coisa. Onde? No Pingo Doce. Caramba, alguém no seu perfeito juízo, que acompanhe a minha brilhante obra literária de cinquenta e três anos de blogs me imagina a entrar no Pingo Doce? E, blasfémia, a comprar Planta? Planta com sabor a manteiga? Céus.


(rapaziada da Old Bushmills, da Cohiba, da Fundação Eugénio de Almeida, da Rosa & Teixeira e da Livraria Bertrand, nada temais, é avançar...).

Estava aqui a ler a entrevista de ontem da Helena Sacadura Cabral ao Diário Económico...

...e ainda não decidi se a entrevista é o mais potente anticoncepcional que já se inventou ou se, por outro lado, nos faz desatar a ter uma vontade incontrolável de ter descendência.

(seja como for, é uma grande entrevista de uma mulher como já se fazem poucas)

05 agosto 2013

Queridos emigrantes, é Pipoco quem vos quer falar ao coração

Suporto perfeitamente Joaquim de Barreiros incitando "Chupa Teresa" nas vossas colunas de som, acho delicioso o símbolo da Federação Portuguesa de Futebol estampado no capot dos vossos Opel Calibra, não me aquece nem me arrefece que façam piqueniques com mantas estendidas no relvado das estações de serviço, convivo bem com o cabelo espetado com gel dos rapazes e o cabelo louro com raízes pretas da moças, consigo suportar tranquilamente as vossas vozes altas a falar francês suburbano, mas, por quem sois, é assim tão difícil largar a filha da puta da faixa do meio da autoestrada, caralho?

Os novos Maias, ou como se chama aquilo (II)

A primeira impressão que temos é que Agualusa resolveu trazer Carlos da Maia para o seu (dele, Agualusa) território. Savanas e fatos brancos no meio de caçadas, velhas histórias de feitiços de sobas. É um cenário tão verossímil para encontrarmos Carlos da Maia como o é encontrarem-me a mim no meio dos Diabos Vermelhos em pleno estádio da Luz. Não cola. Depois, Agualusa parece cair na realidade e recupera o bom velho Carlos da Maia, um eterno apaixonado, dos que crêem que o amor não erra. Infelizmente, a coisa não tem remendo e o terceiro (e felizmente o último) dos episódios que Agualusa nos propõe é uma coisa sofrível, sem nexo. Uma maçada. Dois em dez, portanto.

04 agosto 2013

Os novos Maias, ou como se chama aquilo

O José Luís não escreveu como se fosse o José Luís, optou por escrever como achava que escreveria Eça. Não saiu grande coisa, é como se tivessem convidado Saramago para isto de continuar os Maias e Saramago resolvesse começar a escrever parágrafos curtos a torto e a direito, com pontuação e tudo. Aquela bizarria que por lá aparece, se calhar o José Luís achou que ficava bem a piscadela de olho, é um pouco como aquele filme que eu vi, filme de época sobre o Robin Hood e a maçã tinha um autocolante com a marca da empresa das maçãs. Ficou mal, como fica mal deixar Eça ali a pairar, esse Queirós, dizem eles, como se Carlos da Maia fosse mais importante que o criador. De resto, para sair o que saiu tinham-me encomendado o trabalho a mim e eu, que só tenho um blog e li livros de Eça, fazia igual, numa noitada de trabalho.

Quatro em dez, portanto.

02 agosto 2013

Isto sim, incomoda-me. Porque a estes sou eu que pago.

Já a história do camião de lixo que se virou ao contrário porque o estômago do tipo que estava a conduzir transbordava com cinco amêndoas amargas e três aguardentes de medronho enquanto que o do tipo que estava ao lado se contentou com cinco vodkas e três cervejas do Lidl, este último, diz o jornal, era imigrante de Leste, me incomoda deveras.

Neste caso sou eu quem está a pagar o divertimento dos juízes do tribunal da relação do Porto que se entretiveram a fazer um concurso em que o vencedor seria quem dissesse a barbaridade maior. Imagino os doutores da lei, em casa de um deles, os processos capeados com uns cartões verdes de expediente transitado, um deles a mandar para o ar "Ó Petersen Silva, escreva aí que o trabalho deles não é agradável", O Petersen Silva havia de concordar, morangoska na mão, e, todos a rebolar de riso com a ideia da vida sem graça nenhuma dos recolhedores de lixo, havia de se sugerir "Ó Paula Ferreira Roberto e se a alegação dissesse que com álcool o trabalhador pode esquecer a agruras da vida e empenhar-se muito mais a lançar frigoríficos sobre camiões, e por isso, na alegria da imensa diversidade da vida, o público servido até pode achar que aquele trabalhador alegre é muito produtivo e um excelente e rápido removedor de electrodomésticos?". E os três, rebolando-se de riso, mais um caipirão para alegrar as existências, haviam ainda de dizer "Frias Rodrigues, que parece ao caro colega incluir que não há nas leis laborais nenhuma exigência que o trabalho não possa ser realizado com o trabalhador a pensar o que quiser, com ar mais satisfeito ou carrancudo, mais lúcido ou, pelo contrário, um pouco mais tonto?". Talvez um deles ainda tenha sugerido "vejam lá, colegas, isto é só a gente aqui a falar, não enviem isso assim", mas demasiado tarde, um deles já tinha carregado em "send" e estava feita a coisa.

Isto sim, é coisa para me aborrecer porque, lá está, a estes são os meus impostos que pagam.

Zico-Mandela, o cão fofinho

As notícias de ontem diziam-me que o ex-Zico, o dócil e fofinho cãozinho que estraçalhou uma criança, fica à guarda da associação Animal. Foi rebaptizado de Mandela porque esteve preso, tal e qual como Mandela. Podia ter sido rebaptizado como Padre Frederico mas ficou Mandela o que também não está mal visto. Mandela, o cãozinho, vai ter agora, segundo a notícia do Público, tratamento especializado. Vai para um hospital fazer um "check-up" geral e segue para as mãos de um comportamentalista animal e um especialista em recuperação de animais agressores, o que, parecendo que não, é uma estragação de dinheiro, pois se o cãozinho não fez por mal, não se percebe para que serve o tal especialista em animais agressores.

Fui ver os estatutos da Associação Animal e diz lá que não recebem dinheiros públicos. Fiquei contente, não me estava mesmo nada a apetecer começar o fim de semana com este desconforto no estômago de ser eu que estava a pagar o tal "check-up" geral e o comportamentalista animal e o tal especialista em recuperação de animais agressores.

01 agosto 2013

Pipoco também quer falar da Comporta

Este blog nasceu na Comporta. No Museu do Arroz, numa noite de Março, depois de um jantar de amigos, bem regado a vinho tinto. Foi uma aposta. Era só isto, lembrei-me agora e achei que não era bom para ninguém eu guardar esta informação tão valorosa só para mim.

Estilo

Mulher com vestido preto e cabelo apanhado, óculos de massa , a sair de carrinha BMW série cinco, verde garrafa.