31 maio 2021

Quatro e meia

Que importa se são quatro e meia, põe-te a pé, está certo que não há voos das sete para não perder, agora quase não fazes voos das sete, na verdade nem das sete nem nada, mas quatro e meia é uma hora tão boa como outra qualquer, avança, sempre despachas dois episódios do "Método Kominsky", temporada três, antes do sol nascer, depois escolhes correr o caminho para poente, terás o sol de frente na volta, talvez te ajude a decidir se é desta que compras o barco a remos para aproveitar melhor a barragem em fim de dia, ou então lês o que te falta dos livros que tens meio lidos e espalhados pela casa, afinal parece que vais ler um livro de respeito, é melhor enfrentá-lo sem contaminação, em não te apetecendo correrias com o cão ao lado, podes decidir por sentar-te em posição de flor de lótus e deixar que nada mais importe senão respirares, podes escolher uma voz que te guie e que invariavelmente te sugira, sem impor, que os teus pensamentos se passeiem pela empatia e pela quietude, desistirás ao fim de trinta segundos, bem-entendido, e escolherás afinal a correria, não há nada pior que os teus pensamentos deambulem por verdes prados e por terras de leite e mel, são sete da manhã, o tempo passa a correr, prepara um bom sumo das tuas laranjas e selecciona a Bartoli, não há melhor combinação do que Bartoli e sumo de laranja, isto tirando bola e bifanas ou imperial com camarão da costa.


(inspirado pela Flor e pela Susana, que não vislumbram a beleza que há em acordar às quatro e meia)

30 maio 2021

Em que seu pai o levou para conhecer o gelo

 Às vezes, quase nunca, falham-me todas as artes da fuga e não tenho como escapar, eu e a flute de champanhe a ter que ficar até ao fim, felizmente não me falham as palavras, valha-me deus, continuam a ocorrer-me as mais adequadas às circunstâncias.

29 maio 2021

Havia de recordar aquela tarde remota

Estou prestes a abalar para o Sul, faço-o como as abetardas ou os flamingos, ou lá como se chama a passarada migradora que volta todos os anos, excepto nos anos de pandemia ou nos anos de viagens grandes que calham na mesma altura em que me sabe bem o Sul, um par de anos são muitos anos, bem sei que hei-de estranhar o que mudou, talvez o bar onde se via a bola esteja fechado, talvez Don Ramiro não esteja lá para me perguntar se prefiro lingueirão ou ventresca, talvez o mar não esteja tão batido pela ventania de sotavento, talvez os livros sejam mal escolhidos porque me faltará a feira de Junho, mas, em verdade vos digo, estão próximos os dias em que a melhor parte é ter demasiado tempo.

28 maio 2021

Diante do pelotão de fuzilamento

 Da mesma maneira que as famílias felizes se parecem todas umas com as outras e cada família infeliz é infeliz à sua maneira, os amores que realmente contam são os que estão sempre revoltos, as pazes sempre  por fazer, os outros, os da lareira acesa e cafunés, os de mantinhas e mau cinema, os de suspiros e concórdia, soam-me todos a música de elevador e a bacalhau com natas.

27 maio 2021

Muitos anos depois

Um dia, há demasiados anos, perguntaram-me por que nunca me despedia com lágrimas ou, pelo menos, com a voz entrecortada e as palavras a saírem a custo e eu fiquei de pensar nisso, disse-o com aquela convicção com que se diz a alguém que não estimamos por aí além que um dia destes havemos de ir jantar, afinal descobri que me despeço sem lágrimas nem voz entrecortada porque sei que havemos de nos encontrar lá à frente, num acaso cuidadosamente preparado.

17 maio 2021

Estava aqui a pensar...

... que o melhor da pandemia foi nunca mais se ter visto por cá nem o Riverdance nem aqueles tipos do Harlem Gospel Choir, embora estes só viessem por alturas do natal, a boa notícia era que estávamos avisados e podíamos sair da cidade a tempo, mas realmente, o que eu queria dizer é que hoje apertei a mão a um homem, um aperto de mão mesmo a sério, nada dessas bizarrias de encontros de punhos ou de cotovelos, um aperto de mão em que dois homens se olham nos olhos e apertam a mão com firmeza, coisa de serem pessoas em quem se pode confiar.