31 março 2020

Um post por dia até ao fim do Corona - Dia 16

Da mesma forma que naquilo das Twin Towers retivemos o retrato do homem que caía de cabeça para baixo paralelo à fachada ou o homem de pasta de trabalho coberto de pó, destes dias que passamos agora que retratos reteremos? A enfermeira italiana exausta dormindo sobre o teclado, os veículos militares a transportar corpos de Bergamo, as águas de Veneza limpas? 

30 março 2020

Um post por dia até ao fim do Corona - Dia 15

Há uma coisa boa que o bicho nos trouxe, algo a que nos tínhamos desaprendido e que, à bruta, tivemos que reaprender.

A arte da espera.

29 março 2020

Um post por dia até ao fim do Corona - Dia 14

Uma enfermeira amiga, pessoa que conheço bem e que esteve na linha da frente em Wuhan, esteve lá quando foi passámos Macau para os chineses, ainda ninguém falava do vírus e ela, tão à frente do seu tempo, já lá estava, depois esteve em Itália, em Milão, por alturas do nascimento do segundo filho, um rapagão que está agora no mestrado de Antropologia, esta enfermeira muito minha amiga, dizia eu, partilhou os seus saberes e a experiência de quem lá esteve nos locais onde as coisas aconteceram mesmo e eu, que nem sou de partilhar, vou abrir uma excepção, é para isso que cá estou, para que o conhecimento não se perca, É MESMO IMPORTANTE QUE CADA UM FAÇA A SUA PARTE, então cá vai:

i) Não deixem que se vos acabe o Bushmills 1608, 400º aniversário, uma dose por dia logo ao acordar, deverá ser suficiente, aqueles quarenta e seis graus de álcool fluirão pelo sistema sanguíneo, garantindo uma protecção extra contra maleitas variadas em geral e contra o Corona vírus em particular;

ii) Não deixem que se vos acabem os Cohiba Lanceros, está provado que os verdadeiros puros de Cuba, por causa da sonoridade dos Buena Vista Social Club, activam o nosso hipotálamo e libertam as endomorfinas que temos na parte reptiliana do nosso cérebro, convocando a hipocondríase, que é uma proteína que nos mantém despertos e alerta com perigos vários;

iii) Está provado que Mendelssohn resulta melhor que Grieg para espantar o vírus, Mendelssohn escreveu o lago dos cisnes e está provado que os cisnes não são atacados pelo Corona vírus, além disso Grieg era uma pessoa que sofria dos nervos e sofrer dos nervos é de evitar nestes tempos incertos;

iv) Aprendam estatística, temos que alisar a curva, é uma responsabilidade a que não podemos escapar e, se cada um alisar a sua curva, o resultado de todos os alisamentos individuais será um enorme alisamento colectivo, evitando-se que a segunda derivada tenda para infinito, o que, como todos sabemos, seria desastroso.

Por favor, repassem, só assim podemos por fim a esta pandemia que nos faz sofrer a todos, principalmente os velhinhos.

(se calhar estiquei-me um bocadinho com esta bizarria de escrever todos os dias...)

28 março 2020

Um post por dia até ao fim do Corona - Dia 13

Tivesse eu uma varanda, que não tenho, e seria um aborrecimento para todos, havia de criar o movimento #vaicorrertudobemmaséocaralho e em vez de aulas de ioga comunitárias ou cantar a minha versão do Sole Mio, havia de encomendar um megafone dos grandes pela Amazon, e, aproveitando o facto de acordar cedo, havia de explicar às pessoas que vai não mesmo correr bem, que não viajaremos como viajávamos, que não teremos as liberdades que tínhamos e que as esplanadas demorarão a servir o nosso gin favorito, enfim, havia de ser o vizinho menos popular da praceta mas sempre seria melhor que a minha versão do Sole Mio.

27 março 2020

Um post por dia até ao fim do Corona - Dia 12

Nos idos de Janeiro, nesse tempo em que antecipávamos que tudo ia correr bem e nem precisávamos do hastag a dizer que vai tudo correr bem, tinha eu decidido que na semana passada estaria três dias em Bilbau e outros três em Paris, tinha decidido que lá para finais de Abril iria passar uma temporada ao Botswana com um saltinho à cidade do Cabo, tinha decidido que hoje mesmo partiria para São Francisco para lá estar dois dias.

Afinal estou aqui, a escrever no blog.

26 março 2020

Um post por dia até ao fim do Corona - Dia 11

E, de repente, dou por mim a não me zangar com a tribo dos que, mesmo nestes dias sem trânsito, escolhem a faixa do meio, dou por mim a não julgar os anciãos que circulam pela rua como se nada se passasse, dou por mim a tolerar os atrasos na entrada em videoconferência, dou por mim a não querer adivinhar quando será o fim de tudo isto, dou por mim numa paz que não conheço, apreciando o céu sem rasto de aviões e a passarada que chegou mais cedo este ano, dou por mim a analisar quanto cresceram os pés de feijão de ontem para hoje.

A última vez que me senti assim foi quando o Sporting foi campeão.

25 março 2020

Um post por dia até ao fim do Corona - Dia 10

"Contágio", o filme de Soderbergh, que já achei fraquinho há uns bons anos, continua a ser um filme fraquinho, apesar de ser capaz de se transformar no filme mais visto do ano, Soderbergh nem sequer se esforça por nos deixar de coração destroçado, em vez de deixar que a Gwyneth Paltrow se infecte com o tipo lá da escala em São Francisco, ou onde era, prefere a solução do abracinho ao cozinheiro, retirando toda a mensagem e densidade dramática que a película pudesse ter.

(Coisas realmente importantes, acabou-se o Jameson de 18 anos, o rolo de papel higiénico ainda vai a meio, sinal de que as minhas prioridades ainda são o que são)

24 março 2020

Um post por dia até ao fim do Corona - Dia 9

De tudo aquilo que me tem divertido por estes dias, e esforço-me sempre por me divertir mais quando os tempos são mais duros, o pano de fundo das video conferências, que antes eram circunspectas salas de advogados, com volumes de código civil primorosamente encadernados, ou salas de administração com longas mesas de boa madeira, são agora móveis de mau gosto com bugigangas dessas que se ganham em rifas de quermesses, há crianças que pedem atenção, há barbas de três dias e mulheres que, episodicamente, passam pelo cenário com o cabelo apanhado por toalhas turcas, diverte-me que as pessoas não acautelem o futuro, chegará o dia em que o Doutor Telles de Vasconcellos nos apertará a mão, com a sua gravata Dior e nós só nos lembraremos do seu casaco polar com borbotos e do quadro do menino da lágrima a espreitar pelo enquadramento.

23 março 2020

Um post por dia até ao fim do Corona - Dia 8

Não sei se vos sucede também, mas eu estou sempre à espera que o Rodrigo Guedes de Carvalho termine as preleções lá dele olhando-me nos olhos e dizendo "Palavra do Senhor...".

22 março 2020

Um post por dia até ao fim do Corona - Dia 7

De tudo o que tenho observado neste tempo em que, podendo, a coisa certa é ficar em casa, o comportamento dos nossos mais velhos é o que mais me tem fascinado, é vê-los destemidos nas  compras às três da tarde, que importa se há horários que lhes foram destinados? isso de se admitir que se é um velhadas e ir às compras à primeira hora é que não, há que mostrar que ainda se é valente, os nossos mais velhos, arrastando-se, com a dignidade possível, enfrentam o bicho, afinal todos havemos de quinar, e, quinando, vamos deitados, são velhotes bravos, uns invocam os bagaços que já aviaram, outros as carnes rijas, não há bicho que fure uma pele calejada, outros ainda recordam que já sobreviveram à pneumónica é a peste, isto somado a três anos de comissão em Angola, não vai ser um bicho que não se vê a levá-los e, se for, falecer que seja agora, que sempre se aparece na capa do Correio da Manhã.

21 março 2020

Um post por dia até ao fim do Corona - Dia 6

E, de repente, passamos a saber o significado de postecipação e assintomático, a diferença entre uma máscara P3 e P2 e descobrimos que afinal ainda conseguimos ler livros e sabemos como se fazem scones, que jogar Trivial edição de mil novecentos e oitenta e oito pode ser uma grande animação e que há café para além das cápsulas Nespresso.

Isto desta nova rotina, não fosse pelo que é, não parece má coisa.

20 março 2020

Um post por dia até ao fim do Corona - Dia 5

Pessoa amiga e a quem reconheço grande fiabilidade nas informações que me transmite dá-me nota de hoje ser já sexta-feira, estranho a informação mas aceito, será então sexta-feira, talvez fosse dia de um conhaque de fim de jantar com o Burnay de Sottomayor, talvez me apetecesse ir aos fados ou aproveitar a assinatura da Gulbenkian, é então sexta-feira e sou um homem de sorte, posso escolher entre aquilo de Ulysses, o livro, ou a paixão de não sei quem, de Bach.

19 março 2020

Um post por dia até ao fim do Corona - Dia 4

Neste momento,  Jameson está a 85%, papel higiénico está a 100%. Temos uma tendência.

Começo a pensar que o Ruben Amorim afinal foi boa ideia, o homem não perde um jogo, caramba.

O que mais custa é despedir-me do dono do meu restaurante preferido e não estar certo se será a última vez que lá entro.

Já peguei em Ulysses, o livro,  com intenção de retomar. Ao lado estava o último João Tordo, já lá  vai metade. Também aqui, temos uma tendência.

Fiz a maior encomenda de sempre de café.

Tenho pensado muito nos amantes. Que desculpa darão lá em casa?

18 março 2020

Um post por dia até ao fim do Corona - Dia 3 e meio

É quase comovente ver a despedida daqueles que seguem para teletrabalho por tempo indeterminado e os que ficam por cá, pudessem as pessoas abraçar-se, que não podem, e ouviríamos sonoras e sentidas palmadas nas costas, dadas num silêncio de morte, há no semblante de todos um imaginário de Vietname, somos todos boinas negras, desviando-nos do napalm, ziguezagueando entre fogo inimigo, voltaremos a ver-nos?, cruzaremos de novo  os nosso olhares junto da máquina do café?, nós, os da linha da frente, os das trincheiras, dizendo que podem ir em paz, nós nos encarregaremos de manter o carrossel a girar, não desiludiremos em quem nós confia, eles, os do teletrabalho, dizendo que trocariam connosco de bom grado, que a nossa abnegação será recompensada quando tudo terminar, mas na verdade a pensar nas séries do Netflix que vão pôr em dia, aquele olhar de "foda-se, ainda bem que não me calhou a mim, caralho...", a denunciá-los, nós a saber que eles sabem que nós sabemos, é quase comovente ver a despedida, dizia eu.

Um post por dia até ao fim do Corona - Dia 3

Dois bens essenciais e escassos adquiridos no mesmo dia. 
Qual deles se esgotará primeiro?


17 março 2020

Um post por dia até ao fim do Corona - Dia 2

Lembro-me bem do vulcão islandês, claro que sim, mas esse só me tramou um regresso de Madrid, ou lá o que foi, também me recordo daquela situação dos camionistas do gasóleo, mas só me ia  tramando umas férias de Páscoa, isto do vírus é coisa muito pior, acabou de me ocorrer pegar de novo em Ulysses, o livro.

16 março 2020

Dia 1 - Post para ser lido em Dezembro de Dois Mil e Trinta e Oito

Caros Coronaboomers, neste mês em que chegais à maioridade, Tio Pipoco pretende falar-vos, chegai-vos mais à minha beira, agora podeis, Tio Pipoco entende que é hora de saberdes que não fostes umas crianças particularmente desejadas, sucedeu que, naquele tempo, os vossos pai e mãe foram mandados para casa por causa de umas bichezas que andavam no ar, ora, dizia eu, andavam os vossos pais entretidos a fazer as compras para o semestre, meia despensa atulhada com papel higiénico, que era uma coisa que se usava na altura, naquele tempo o sistema digestivo funcionava de forma complexa, não é como agora que nos fornecem os nutrientes por wireless e a coisa se faz com resíduo zero, a vossa mãe sarrazinava o juízo do vosso pai, Zé António podias tratar das dobradiças dos armários, Zé António,  não queres ver aquilo da canalização do lava-loiças, isto tudo sem os jogos da bola que, parecendo que não, sempre são distração garantida, uma coisa puxa a outra, a tensão das notícias lá das bichezas que andavam no ar forneceu aquele contexto dramático de sabe-se lá como será o dia de amanhã, e o resto é história, não estranhem terem tantos amigos de Dezembro de dois mim e vinte a competir convosco na entrada para a faculdade, as coisas foram como foram e a gritaria que os vosso pais tiveram um com o outro, lá para Maio, eu bem te disse que era melhor não Zé António, não é para aqui chamada, vocês cá estão, não importa agora saber da azia que os vossos pais vos tiveram quando souberam, apenas achei que deveriam saber das coisas, que, no final de contas, são como são.

15 março 2020

Movimento "Um post por dia até ao fim do Corona"

Velhas glórias dos blogs, é sair da hibernação.

Quem alinha neste Serviço Público?

14 março 2020

Vou avisando, Tio

Só temos três rolos de papel higiénico em casa...

13 março 2020

Hoje é o dia

O problema, Ruben Patrick, é que perdemos a capacidade de ser empáticos, de sermos capazes de um sacrifício por uma causa comum, hoje não teríamos ninguém para desembarcar na Normandia nem a combater por um valor mais alto, convidaram-nos a procurar a felicidade a toda a hora em vez do caminho duro e longo do mérito e confundimos tudo, pensando que isso de ser feliz é viver cada dia como se não houvesse amanhã, que todos os dias são dias de “experiências”, esquecemo-nos do nosso direito à tristeza e tratamos aqueles que ainda se lembram de como são os valores da solidariedade, os que não deixam os mais frágeis para trás, como imbecis que não sabem viver a vida, transformámo-nos em idiotas focados em nós mesmos, julgamos que tudo podemos e que nada nos abala, invencíveis e imortais, basta “sermos nós mesmos “, “pensar fora da caixa” e “sair da zona de conforto “.

Mas, Ruben Patrick, há alturas em sozinhos nada podemos, há ocasiões em que não temos outro remédio senão avançar juntos, em que só resultará estarmos todos do mesmo lado, pensando no que ganhamos todos e não no que vai perder cada um, em que não podemos fazer outra coisa que não seja preocupar-nos com o outro porque o outro somos nós.

11 março 2020

Respeitinho

Nós somos aqueles que lutamos por um pedacinho de areia na praia no dia em é anunciada uma pandemia.

(já que vamos ficar infectados, ao menos que entremos no hospital com uma corzinha...)

09 março 2020

08 março 2020

O meu destino nunca foi ficar

Chegue eu a sexta feira treze e poderei dizer que há dez anos que por cá andamos, eu e o rapazola do Ruben Patrick, isto do blog será da minhas relações mais estáveis, às vezes aborreço-me e vou ali passar um tempo indeterminado a cofiar barbas de três dias enquanto me detenho na espiral de fumo de um Cohiba Lanceros, a coisa resolve-se, outras vezes perco-me em elaboradas alquimias de palavras cuidadosamente alinhadas e divirto-me com o efeito que lhes tinha encomendado, e, é claro, a maioria das vezes ainda me deslumbro com a magia das pessoas que imagino do outro lado do blog, quem serão, o que as trará cá, serei eu capaz de as inquietar, de as levar pelos caminhos das viagens que fizeram de mim melhor pessoa, de as interessar pelas dúvidas que cada vez mais tenho, de as convidar a ler os livros que me fascinaram?

06 março 2020

Palavra do Senhor


Talvez seja dos meus olhos, mas os livros andam cada vez mais iguais, os casais que acabam por ficar juntos são os que guerreiam no princípio, a meio do filme morre o melhor amigo de alguém, no fim fica sempre aquele travozinho a azedo de aquilo que levamos para casa para pensar ter a profundidade das mensagens do Chagas Freitas lá do sítio, fazem-me falta livros onde os pais levem os filhos a conhecer o gelo à tarde ou onde as famílias sejam infelizes cada uma à sua maneira.

03 março 2020

Ponto de situação


Sinto-me nestes dias que já levamos do ano novo como o tipo do último filme do Sam Mendes, o tipo que estava ali refastelado na trincheira e afinal acaba convocado para uma espécie de missão impossível, acontecendo-lhe coisas nefastas no caminho para aquilo que, bem o sei, será um acumular de derrotas até à vitória final, o tipo sobrevivendo a campos minados e bunkers artilhados, caminhando por entre cadáveres e sobrevivendo a fogo inimigo, eu sobrevivendo a derrotas do Sporting contra equipas de nomes de que, sem nunca os ter lembrado, já os esqueci, ao concerto do Rodrigo Leão, a experiências culinárias que incluíram beringelas gralhadas recheadas com soja e mau queijo, a cancelamentos de viagens que, cada uma por si, seria a viagem da vida de muito boa gente, a maus vinhos e a infortúnios variados de natureza tão pessoal que aqui não cabem, apesar de nenhum deles beliscar a minha condição de macho alfa, bem entendido, tudo isto somado a este inverno não poder aplicar um par de esquis nos pés, e ter dois bons lugares para o John Cleese para ceder à melhor oferta, valha-me o espectáculo do Bruno Nogueira ter sido do meu agrado, não fosse isso e não poderia dizer-vos que cá vamos andando como deus quer.