27 julho 2021

Assim de repente, é isto

 Tenho doze livros empilhados na minha mesa de cabeceira e não consigo entusiasmar-me com nenhum, parece-me que descobri que os livros são todos iguais a livros que já li, Madame Bovary soa-me à Morgadinha dos Canaviais misturada com o Primo Basílio, com o cinema é igual, Luca é parecido com Soul misturado com A pequena Sereia, fui almoçar na sexta-feira a um restaurante cheio de pessoas e deixaram-me, ia jantar ao mesmo restaurante na mesma sexta-feira com o restaurante praticamente vazio e não me deixaram porque faltava um par de dias para me poderem deixar, faltam poucos dias para a minha viagem grande e só sei que pode ser nos Alpes ou nos Pirinéus ou no Gerês, não está a custar nada, a minha vida sempre foi gerir situações e fazer de conta que sei coisas, fui e vim ao Porto num dia e fui e vim a Angra do Heroísmo no dia seguinte, cada vez percebo menos de mulheres, talvez nunca tenha percebido muito, talvez não haja muito para perceber.

16 julho 2021

Mais logo

Se eu me posicionar na relva fresca com o corpo deitado numa hipotenusa entre as linhas imaginárias da figueira ao sobreiro e da figueira à macieira, às onze da noite terei a ursa maior exactamente por cima de mim, se me apetecer encontrar o norte, que não apetece,  é contar seis distâncias das guardas e lá está, onde sempre esteve, a estrela polar, o som de fundo é dessas noites de estio sem nortada, cortado por uma ou outra coruja, cheira a uma mistura de resina e lavanda, à distância da minha mão direita tenho um copo de Jameson, ao alcance da mão esquerda a cabeça do meu cão grande, se isto não é o momento perfeito, então não sei nada de momentos perfeitos. 

15 julho 2021

Em verdade te digo, Ruben Patrick

Se um dia te apetecer apresentares-te a elas sem malabarismos nem cartas na manga, Ruben Patrick, coisa que, estou certo, jamais se te afiguraria ideia vencedora, mas, por redução ao absurdo, se tal bizarria te ocorresse como sendo de valor, só tu e as tuas fraquezas, os teus medos, a admissão do que não sabes, enfim, sem defesas, só a tua essência, a ideia de aquilo seres tu, veste um desses coletes que servem para que te passem desses tratores de rodas grandes, os das pedreiras de Carrara, ou então qualquer coisa que te proteja dos piores ácidos, desses de pê-agá inferior a um, porque elas não te perdoarão a ousadia de não as iludires, de nada trazeres que as entretenha, considerarão uma desconsideração não teres trazido ao menos um número de circo, umas palavras de sentido dúbio, um truque desses de cartas na manga, enfim, alguma coisa que demonstre que te preparaste em condições, que pensaste nelas a montante.

11 julho 2021

Chegamos sempre tarde à vida das pessoas

"Tentamos mostrar-nos amáveis e gratos e inteligentes, e merecemos uma palmada nas costas - do nosso amor um beijo ou aquilo que costumava vir a seguir a este, ou pelo menos um olhar que prolongue um pouco mais a esperança -, e não percebemos como é que existem indivíduos estridentes ou bisbilhoteiros ou deficientes ou muito limitados que, aos nossos olhos sem merecimento algum, obtém gratuitamente aquilo que a nós nos custa tanta inventiva e tanto brio e tanto alerta. É frequente a única resposta ser o facto de essas pessoas virem de antes, de nos precederem desde há muito na vida do amor ou do amigo ou do mestre; ignoramos aquilo que se forjou entre elas e talvez o ignoremos para sempre; percorreram muito caminho juntas, quiçá sujando-se na lama, sem que nós estivéssemos lá para as acompanhar nem presenciar. Chegamos sempre tarde à vida das pessoas"

In "Assim começa o mal", de Javier Marías

10 julho 2021

Em verdade te digo, Ruben Patrick

 De todas as coisas importantes que deverás saber sobre mulheres, Ruben Patrick, a mais importante é que saibas que há ocasiões em que elas chegam, como se estivessem de passagem, e quando dás por isso elas ocuparam espaço vital, como se fosse por usucapião, e não há maneira fácil de as convidar a sair, é por isso, Ruben Patrick que este ensinamento é dos que deves reter, nunca se deve deixar entrar uma mulher nos teus pensamentos, nem um único dia, a menos que estejas disposto a que fique para sempre.

(claramente inspirado na página duzentos e um de "Assim começa o mal", de Javier Marías)

03 julho 2021

Come chocolates, pequena; Come chocolates!

Foi o que me pareceu que diziam os pais da miúda redondinha que seguia à minha frente na fila das compras, enquanto aceitavam embevecidos tudo o que a miúda redondinha lhes estendia com as mãozitas gordas, refrigerantes variados, uns cereais achocolatados, duas bolas de Berlim, a miúda redondinha com os olhitos atentos às prateleiras, em estado de alerta como se a sobrevivência semanal dependesse das provisões que conseguisse colocar no carrinho de compras, os pais sorrindo e aceitando o que as mãos da miúda redondinha lhes estendiam, felizes com o poder de decisão da miúda redondinha, e eu, que sou uma pessoa muito influenciável, lá fui devolver o Häagen Dazs Cookies&Cream que me acompanhariam os resumos dos jogos do europeu.