29 novembro 2020

Em verdade vos digo

 Desde que me lembro que, de cada vez que tento mostrar a beleza de um jogo de xadrez, o instinto e a técnica na dosagem certa, a maravilha de antecipar a jogada do adversário três movimentos à frente, as pessoas com quem falo mudam de conversa e em dez segundos estamos a falar de até quando o Sporting se aguentará na frente.

O que eu não consegui fazer em décadas, a Netflix conseguiu em duas semanas.

20 novembro 2020

Dois mil e vinte foi farto em episódios que preferíamos não ter visto

Ele foi o Presidente a ser vacinado, o Miguel Sousa Tavares a ser um desastre com a entrevista àquele rapaz que diz coisas, a directora da saúde a dizer que as máscaras eram coisa ruim, o Jorge Jesus a dizer que tinha acabado de chegar e ainda não se notava a sua genialidade.

E agora isto do advogado de Trump com tinta de cabelo de má qualidade, valha-me deus…

18 novembro 2020

Fui ver

Madame Palmier convidou e eu lá fui, e foi bom ter ido, não nego que é assustador estar rodeado de Madame Palmier por todo o lado, mas sempre vos digo que a artista evoluiu, longe vai o tempo aziago em que a obra nos transportava para uma ETAR das de primeira geração, isto é outra conversa, e sempre vos digo que é uma sensação estranha, eu que me habituei a que as pessoas dos blogs são uma construção, estão ali só para nos entreter, e afinal não, é inegável que diante dos meus olhos está o que vi no blog, e Madame Palmier, o boneco, ganha dimensão e agora não há como não ver que é capaz de ser verdade que há pessoas atrás dos blogs





16 novembro 2020

É como o Instagram, creio eu

 Uma dessas funcionalidades que ninguém pediu à rapaziada dos telefones inteligentes que inventasse recordou-me logo de manhã um retrato com um ano e meio, era o tempo em que se faziam viagens e eu estou em Khardung La Pass com barba de doze dias, uma boa barba, sorridente naqueles cinco mil e muitos metros de altitude e quase trinta graus negativos, nem uma palavra o retrato diz como cheguei ali, se por meu pé ou com ajuda, se sofri ou não na subida, o que me custou o regresso, se foi ou não má ideia ter lá ido numa abertura de bom tempo que podia ter sido demasiado curta, é só um tipo com barba de doze dias e neve à volta e uma placa a dizer que estamos a cinco mil seiscentos e dois metros de altitude, quase três Serras da Estrela, posso contar a história que eu quiser, suor e lágrimas ou coisa para meninos, risco total ou segurança acima de tudo.

15 novembro 2020

Não gostaria de estar no lugar dessa boa gente que inventa os anúncios do Natal

 Que farão este ano com os senhores velhinhos que sentavam os netos em cima dos joelhos, um menino e uma menina, ela loura, sorrindo enquanto desembrulham prendas de um centro comercial qualquer agora netinhos sentados nos joelhos de senhores velhinhos é meia sentença de ir desta para melhor, que farão ao anúncio do azeite, a povoação das aldeias de xisto a encaminhar-se sem distanciamento social enquanto cantam o "Ó rama do Olival", a mais linda das canções de Natal, que sucederá aos camiões com Coca-Cola lá dentro, essa bebida tão tradicional das festas de família agora que as festas de família estão banidas, que será do coelhinho que foi com o Pai Natal e o palhaço no comboio ao circo?

11 novembro 2020

No dia em que perdemos Gonçalo Ribeiro Teles, que isto anda tudo ligado

Tomei conhecimento do último livro de best of do Miguel Esteves Cardoso, esse herói dos sagrados anos noventa, em que eu e outros como eu acreditavam que se tinha inventado um jornal capaz de vender mais do que o Expresso, uma coisa quase tão impensável como o Pipoco Mais Salgado ter mais comentários do que a Pipoca Mais Doce, o blog, quiçá a segunda das improbabilidades talvez já tenha acontecido, embora já cá não esteja ninguém para ver, e eu, que à época achava maravilhoso que alguém escrevesse como MEC, capaz de pegar em qualquer coisa que os portugueses fizessem, fosse a maneira de comer azeitonas em Moimenta da Beira ou os extras que se colocavam à época nos Ford Escort XR3i, só o vocalista dos UHF teve três, eu, que gabava a sorte do meu amigo Zé Gringo, que tinha o pai a trabalhar numas plataformas em Angola e já tinha ido ao Texas, o Zé Gringo era visitado pelo homem do Círculo de Leitores e podia encomendar dois livros por mês, benesse que ele desbaratava olimpicamente encomendando Lobsang Rampa, uma espécie de Paulo Coelho daqueles tempos, mas em mais alucinado, eu, que era eu, desperdiçava o meu tempo a decorar a terceira pessoa do pretérito perfeito e as todas as subdivisões dos mamíferos e dos aracnídeos, saberes tão inúteis como ter decorado um número demasiado grande de letras de canções de José Cid e dos Sitiados, ou seja, em vez de o Ministério da Educação patrocinar a pessoas como eu assinaturas do Times e do Le Monde, do Jornal de Letras e do Blitz, talvez uma Photo para desenjoar, encharcava-nos de saberes inúteis e que nunca me fizeram falta, mesmo contando aqueles dias em que queria impressionar a Maria de Lurdes, ela assinava Maria de Lourdes, e gostava dessas coisas da natureza, eu fazia o que melhor sei, inventava subgrupos de espécies e ela ficava impressionada, anos mais tarde acabei por saber que era lésbica, eu e o meu jeito para antecipar futuros com mulheres, mas, dizia eu, tomei conhecimento do último livro de Esteves Cardoso, o tal best of, e entristeceu-me, como me entristece ver o Herman José ou a Lena de Água, símbolos de um tempo bom, era o tempo em que nos abraçávamos e se começava a noite no Bairro Alto com um Pontapé na Cona, essa mistura de que ninguém conhecia os ingredientes e ainda bem.

Só eu sei porque não fico em casa

Com "A Ratoeira" a começar às oito da noite e os restaurantes a fechar a horas inconvenientes, toda a logística de uma ida ao teatro se altera, é o jantar à hora do lanche, é o estar sem programa viável às dez da noite de um sábado, de repente parece que estamos num desses lugares onde não há sol no inverno e a vida se leva com um deitar cedo e cedo erguer que não é coisa de pessoas de bem.

(Ruy de Carvalho continua a ser uma dessas forças da natureza de que só se produzem uns poucos por década)

10 novembro 2020

Artolas

 Estão magníficos estes tempos para os artolas, que antes conseguíamos triar pelo aperto de mão mole.

02 novembro 2020

Ceci n'est pas un blog de auto-ajuda

 Pega então num pedaço de bom chocolate, não carece ser Valrohna, e fecha os olhos, pressiona ao de leve o chocolate com a língua e sente o derreter suave, pensa agora nos frutos ainda no cacaueiro, amadurecendo ao sol, imagina agora a mulher que extrai os grãos da polpa, que revolve os grão enquanto eles fermentam, imagina agora os homens que carregam os sacos de serapilheira, que embarcarão em navios que enfrentarão tempestades, imagina agora o processo da escolha dos melhores grãos e a mistura com o leite extraído por mãos sábias, as vacas pastando a meia altura dos Alpes, sempre com um pedaço de boa erva saíndo-lhe dos beiços, sente-te então conectado a todos quantos foram necessários para que o pequeno pedaço de chocolate que se derrete na tua boca chegasse até ti, agradece-lhes em silêncio e nunca mais te atrevas a pensar que chocolate é apenas chocolate 

01 novembro 2020

‘Filosofia para Exploradores Polares’

Em menos tempo do que demora o concerto para piano de Grieg, descubro que Erling Kagge tem muito mais habilidade para ser o primeiro a chegar a pé ao Polo Norte, Polo Sul e Everest do que para a nobre arte da escrita.