Escolher um livro para levar para a semana branca é dos momentos mais determinantes da vida de um homem, é bem verdade que, em correndo bem a coisa, o livro nem sequer será aberto, o tempo do aprés-ski será utilizado na dissecação dos tempos cronometrados na Àliga, em longas maratonas densas e dramáticas no bar do hotel, homens com os seus charutos acesos e whiskies velhos repousando tranquilos no copo de boca larga, debatendo com vigor especificidade da coisa, aconselhando-os eu a substituírem os Beatles e Pink Floyd pela Cavalgada das Valquírias, um velho truque que me faz ganhar preciosos segundos na abordagem à pista e que evita perder velocidade de ponta com paralelismos desnecessários.
Mas, se nas boas semanas brancas a escolha do livro é acessória, nas más semanas, naquelas em que, por alinhamento astral, somos projectados contra a neve dura e alguém de bata branca e estetoscópio dependurado torce o nariz e nos recomenda repouso, o livro que se leva é absolutamente fundamental para mostrar quem somos, o livro que lemos na esplanada das pistas é o primeiro foco de interesse das que simularam lesões para escaparem à inclemência das pistas ou das que, pura e simplesmente, extremam a sua incompetência nas artes de esquiar ao ponto de ser o jovem rapagão a sugerir que ela fique ali pela esplanada, que ele voltará no fim do dia, pelo pôr-do-sol.
Sem livro, sou só um homem com barba de três dias e com a pele cheia de sol, o casaco de esqui desapertado, degustando um chá na esplanada das pistas. Mas o livro, o livro, senhores, desperta-lhes o interesse, primeiro só nos querem na visão periférica, depois há um tempo em que a curiosidade fala mais alto e focam-se no que estamos a ler, se a coisa for demasiado ligeira, por exemplo um Saramago, elas fazem um esgar de superioridade intelectual e não nos dedicam nem mais um segundo dos seus favores, em sendo a coisa mais densa, um Roth, acham-nos demasiado sublimes e retraem-se, dando como certa a nossa superioridade intelectual. Os russos costumam ser uma boa aposta, uma escrita densa quanto baste e um je ne sais quoi de fruto proibido, mas fatal, mesmo fatal é Paul Auster, um suave toque de Nova Iorque, requinte quanto baste, personagens a fazer lembrar vagabundos do amor, rebeldes sem causa, um homem que lê Paul Auster nas pistas impressiona-as definitivamente.
Eu ficaria mais impressionada com um Saramago e de todo desinteressada com um Roth. Mas enfim, isso sou eu...
ResponderEliminarpor amor da santa, chamar ligeiro ao saramago comparando com o pretensioso auster (a trilogia de nova iorque é intragável)?
ResponderEliminarhttp://www.newyorker.com/arts/critics/books/2009/11/30/091130crbo_books_wood
ResponderEliminar"This is the crevasse that divides Auster from novelists like José Saramago, or the Philip Roth of “The Ghost Writer.” Saramago’s realism is braced with skepticism, so his skepticism feels real. Roth’s narrative games emerge naturally from his consideration of ordinary human ironies and comedies; they do not start life as allegories about the relativity of mimesis, though they may become them. Saramago and Roth both assemble and disassemble their stories in ways that seem fundamentally grave. Auster, despite all the games, is the least ironic of contemporary writers.
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Luna, posso então depreender que a Luna não é de todo o tipo de pessoa que se furta a um dia nas pistas?
ResponderEliminarInês, e quanto ao Auster, podemos assumir que a impressiona deveras um tipo que lê Auster com aparente gosto na coisa?
ResponderEliminarDepende do target. Eu cá não arriscava numa que preferisse Paul Auster a Saramago ou Roth, digo-te já... Se bem que num aeroporto, Paul Auster tem claramente mais sobreposição com o target (dependendo, é claro, dos destinos e das origens dos vôos). Bem, qualquer um dos três autores tem problemas graves. Roth, pode calhar-te uma psicótica tarada sexual com problemas graves. Saramago, pode calhar-te uma comunista empedernida. Se encontrares uma que goste de russos do século XIX e americanos de meados do século XX, então é para casar.
ResponderEliminarPipoco, ponho antes as coisas desta forma: encetaria conversa com quem estivesse a ler Saramago, ou um romance russo. Manteria a conversa se fosse abordada por quem estivesse a ler Paul Auster (pelo menos enquanto ele não me dissesse que tinha começado a ler Paul Auster depois de ter lido todos os livros do Paulo Coelho ou porque a mãe lhe recomendou) e não me incomodaria em saber quem estava por trás do livro do Roth.
ResponderEliminarTolan, o target são mulheres suficientemente sofisticadas para engendrar um motivo que lhes proporcione passar uma manhã na esplanada das pistas enquanto o seu rapagão desliza com o vento a bater-lhe na cara, durante todo o dia. Por outro lado, homem que fique na espalanada é porque está severamente lesionado, logo capaz de inspirar instintos maternais. É neste contexto que Auster funciona na perfeição, há aqui um efeito de duplo sinal, o rapaz que necessita ser acarinhado lê Auster, um autor cuja compreensão está ao alcance de um intelecto médio.
ResponderEliminarInês, parece-me razoável. No entanto, creio que deveria dar uma segunda oportunidade a Roth, os livros de Roth adquirem uma insanidade muito interessante por volta da página 120, todos eles.
ResponderEliminarE a lesão fragilizou-o bastante, está bem de ver.
ResponderEliminar( experimente ouvir antes isto na tal Àliga: http://www.youtube.com/watch?v=i1uBTCbZLlg.
Ouvir isto num galope é sublime)
Maria Helena
Maria Helena, é o quarto ano consecutivo em que regresso inteiro, creio que é a maturaidade a tomar conta de mim. (só acompanhei um amigo ao hospital, por isso não tive que ficar a ler livros na esplanada)
ResponderEliminarFolgo por o saber bem e por ser ficção tanto o Auster como o Roth.
ResponderEliminarMaria Helena
E depois há aquelas que olhariam duas vezes fosse o Saramago, o Auster, o Roth ou os russos. Mas essas são as fáceis, que lêem quase tudo o que lhes vem tem às mãos.
ResponderEliminarMaria Fonseca, fácil, sim, mas com o que vem ter às minhas mãos (também li Roth e Auster).
ResponderEliminarNas mãos dos outros nada de facilitar (olhe o comentário do Tolan).
Ainda metíamos conversa com um azeiteiro!
Maria Helena
Já lhe disse uma vez, mas repito.
ResponderEliminarV. S. Naipul.
Eu não correria o risco encetar conversa com alguém a ler numa dessas esplanadas. Talvez o facto de apenas frequentar as de cima, onde não podem chegar os lesionados, ajude.
ResponderEliminarPela parte que me toca poderia ler o que lhe aprouvesse, até MRB, eu não daria por nada...
Ah! e o chá é um turn off completo Pipoco, coisa de senior.
(mas folgo em saber que a àliga não levou a melhor, estava mazinha, quando aí estive)
p.s. acho paul auster fundamentalmente leitura de gajas que gostam muito de personagens "profundos, enigmáticos e atormentados"...
ResponderEliminarMaria Helena, eu tenho um coração muito grande e dou sempre uma oportunidade. E um homem que fosse corajoso o suficiente para ler Auster e beber chá em simultâneo (que não seria o caso do nosso caro Pipoco, é evidente)mereceria definitivamente a minha atenção.
ResponderEliminar(E não seja severa com o Tolan. Quer-me parecer que é rapaz novo e vê o mundo com as lentes bifocais da juventude)
Maria Fonseca,um coração alargado é um dom (o meu não é capaz nem de metade, a sério).
ResponderEliminarNão sou nada severa com o Tolan,pelo contrário, acho-o assertivo, bondoso e tem imensa piada.
Maria Helena
A mim chegava-me um Saramago, mas um Camilo Castelo Branco arrebatava-me!
ResponderEliminarMargarida Rebelo Pinto! Isso é que era em bom! lol
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