04 julho 2020

Cá estamos

O que vos conto aconteceu por alturas do tempo em que ainda se podia sair à noite, chegada a hora de fechar o bar do hotel, nesse tempo ainda havia quem dormisse em hotéis, os clientes habituais tinham autorização para se irem servindo, com a condição de assentar numa folha os esvaziamentos de garrafas de Bushmills e de os decibéis se manterem naquele nível que as pessoas de bem  sabem garantir quando conversam até de madrugada sobre filosofias várias em geral e da melhor maneira de salvar o mundo, mas ganhando dinheiro, em particular. 
A mulher, que estava ali tão confortável como esteve o George Lazenby nos intermináveis minutos de Bond que lhe couberam em sorte, desenvolvia eu, com o sólido suporte de razão pura que nos fornece o clássico duo Cohiba Lanceros e champanhe da casa Pommery, uma exposição bem estruturada sobre o que podemos aprender com cérebros como o de Larry Fink, o homem que manda em mais dinheiro do que nos custariam cem companhias de aviões dessas que serviam pacotes de batatas fritas dos pequenos, a mulher, dizia eu, colocou em causa os meus saberes sobre a incrível temática de para onde vão as garrafas de água Fastio quando as deixamos no contentor amarelo e eu, sempre disposto a trocar Larry Fink e os seus devaneios de inicio de ano a anunciar para onde corre o dinheiro, ou seja, para onde corre o mundo, pelos futuros de garrafas vazias de plástico, lá acedi a falar em privado, no fresco de um rooftop na terceira cidade mais bonita deste país, aconselhando-me a prudência, a experiência acumulada e a intuição de que necessitaria de todas as minhas forças em alerta máximo, a fazer-me acompanhar por uma garrafa de água fresca, em vidro produzido nas instalações fabris da Barbosa & Almeida, na Marinha Grande, sorrindo de mim para comigo com a cara que faria o homem do bar, um profissional das más artes de me escutar em noites de inverno em que não se aplica a regra de bar aberto depois de fechar, por falta de almas capazes de aguentar a batida do mar na varanda e a chuva puxada a vento de sudoeste, com a cara que faria, dizia eu, quando ali visse incrustada na minha letra razoavelmente legível a conjugação de palavras "água", "das" e "pedras", rigorosamente por esta ordem, bem sei que não é o que vem na garrafa mas foi o que me ocorreu escrever.

Afinal, não era sobre para onde vão as garrafas de plástico quando falecem que ela me queria falar.

4 comentários:

  1. Ai não? Então falaram do quê e em que linguagem, para além da gestual?!?
    Do preço do camarão da costa? Do berbigão ou do cachucho?...Humm??

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    1. Não sei se já reparou que os seus leitores não se compadecem com os desaires que lhe caibam em sorte. Porém, deixe cair uma frase, assim com a displicência de quem não quer nada, sobre algo que lhes mexa com as emoções e vêm todos/as cair-lhe aos pés, como abelhinhas em volta do pólen das flores...Ah, como é egoísta a alma humana... :)

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  2. Cláudia Filipa5.7.20

    A tradução de um obrigada meu por essa história com tanto que ler e que me soube tão bem, aqui vai:

    Às vezes, quando vejo um filme ou um episódio de uma série, fico a pensar, que determinada frase ou diálogo mereciam ser anotados. Sem anotação ficará na memória apenas a ideia, mas já adulterada, já não tão assertivamente cirúrgica. Às vezes, até me acontece, naquela coisa de querer memorizar aquela parte, logo ali a seguir, desconcentrar-me do resto. Depois passa-me, claro.

    Esta situação aconteceu, há pouco tempo, num dos filmes mais maçadores que vi nos últimos tempos, que fui ver pelos protagonistas, mas, lá está, de repente... Mas, desta vez, com aquela modalidade de parar e pôr para trás e para a frente e assim, fiz questão de anotar. Agora, veja se não fica tão bem com a sua história, este pedaço de diálogo, e se não é um excelente exemplo de "...a melhor maneira de salvar o mundo, mas ganhando dinheiro, em particular." E de todas as problemáticas da correria do mundo no sentido da correria do dinheiro, ou ao contrário, e de como também se manifesta sempre, e, por vezes, com grande pujança, o aproveitamento e o lado perverso de tudo, as tais vertentes que me põem à beira de um ataque de nervos:

    Um homem, uma mulher. O diálogo:
    Ela, a responder a uma pergunta dele: "Eu litigo contra empresas e instituições que tenham comunicações ou ações culturalmente insensíveis."
    Ele: "A brigada do politicamente correto."
    Ela: "Não".
    Ele: "Analisa tudo o que as pessoas fazem e dizem e depois acusa-as de racismo ou misoginia ou de qualquer outro defeito. Destrói vidas e reputações por dinheiro."
    Ela: "Não".
    Ele: "Foi isso com que sonhou? Uma carreira em fascismo reverso?"
    Ela: "Não sonhei com nada." (depois, quem fez o filme, decidiu mudar de assunto, e muito, mas mesmo muito, pobremente, digo eu. Mas havia que puxar ao romance e um filme dura pouco).
    Não sei se também viu este filme, caso não tenha visto, não recomendo, embora, lá está, há dois ou três diálogos que o salvam da miséria. Não ponho o nome do filem para que o que estou a escrever não possa funcionar como "estraga prazeres para quem ainda não tenha visto e um dia sinta vontade de ver" até porque vou ainda contar, que este homem e esta mulher, pouco depois daquele diálogo, acabaram com os corpos em grande debate numa pradaria, bem, aquilo não era bem uma pradaria, mas também foi o que me ocorreu escrever, mais, apeteceu-me mesmo escrever, acho que soa tão bem, pradaria

    Um bom resto de domingo, assim mesmo a tombar para o excelente, é o que lhe desejo.

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  3. Anónimo5.7.20

    Tio, ao ler o seu post, veio-me à cabeça a seguinte frase "fala, fala e nao diz nada".
    Vw

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