14 abril 2020

Um post por dia até ao fim do Corona - Dia 30

No dia seguinte ninguém se abraçou. O facto, por absolutamente contrário às normas da vida, causou nos espíritos uma perturbação enorme, efeito em todos os aspectos justificado, basta que nos lembremos de que não havia notícia nos quarenta volumes da história universal, nem ao menos um caso para amostra, de ter alguma vez ocorrido fenómeno semelhante, passar-se um dia completo, com todas as suas pródigas vinte e quatro horas, contadas entre diurnas e nocturnas, matutinas e vespertinas, sem que tivesse sucedido que se abraçassem os amantes, essa antecâmara para intimidades menores; os pais e os filhos, esses abraços que só os pais sabem dar, envolventes, como se desejassem que o coração ficasse pirogravado no peito dos filhos; os amigos, talvez com uma garrafa de cerveja na mão, celebrando gloriosas vitórias de terceiros; os abraços de circunstância, senhor doutor, há tanto tempo, o senhor doutor está exactamente na mesma, os anos não passam pelo senhor doutor; enfim, os abraços apertados, desses abraços que passam paz ao abraçado, desses que fazem as dores de alma dividir-se por dois.

(obviamente inspirado n' "As Intermitências da Morte" de Saramago)

8 comentários:

  1. Anónimo14.4.20

    E então hoje, por modos lá daquilo dos números mais baixos de ontem e do sol de hoje, e fartos de estar atarracados sem casa, o povo saiu à rua cheio de alegria catárquica, como se tivesse acabado de ir levar o morto ao cemitério, e vá de ir para aquilo das filas grandes, um de de 5 em 5 metros, a dar vaia uns aos outros, nada de dor ciética, nem ensiedade, nem muletras, nem datas de futuras consultas..

    Sem uns números mais assustadores, praí uns 700 mortos por hora, 23.009 infectados por dia 34144 a aguardar resultados laboratoriais e as senhoras da conferência de imprensa a dizer mais umas 500 vezes para lavarem as mãos, meus senhores, não damos conta disto..

    ResponderEliminar
  2. Sabe, caro Pipoco? Sinto falta desses abraços...dos "...abraços apertados, desses abraços que passam paz ao abraçado, desses que fazem as dores de alma dividir-se por dois."

    Se eu lhe pedir que se despeça de quem o lê - até ao fim do Corona - com um abraço, seria capaz de, pelo menos desta vez, aceder ao meu pedido?

    Quer dê resposta, quer não... Obrigada!
    Fica a minha boa intenção.

    Um abraço. :)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. ...mas não me aperte demais, não vá eu ficar tão "atarracada sem casa,ali, como aquele senhor/a do anterior comentário.
      Obviamente a demonstrar evidentes indícios de perda de lucidez, por estar trancafiado/a em casa, nesta malfadada quarentena...

      O que já me ri. :))

      Eliminar
    2. Ah...minha nossa, peço desculpa de tanta visita, sem granjeio, mas desta vez vim por uma causa justa. Esse termo "atarracado" (em casa) é muito usado no Alentejo. Na verdade, chegou-me, vindo de longe, o eco da minha infância e a voz da minha saudosa Mãe, quando recriminava a vizinha por estar: "Sempre com as janelas todas 'atarracadas'"... há coisas que vamos guardando numa gaveta do nosso subconsciente, negamos-lhes a existência mas, em determinado momento, sem sabermos como nem porquê, tudo vem à tona...Que me desculpe ali o senhor Anónimo, sem lhe tirar, contudo, o mérito do bom sentido de humor, naturalmente.

      Eliminar
  3. Cláudia Filipa14.4.20

    Senhor Pipoco, mas que coisa mais linda de post.

    ResponderEliminar
  4. Olá:- Hoje em dia os abraços podem ficar muito caros. Até podem causar a morte, quando antigamente dar um abraço gerava amor, carinho, felicidade.
    Anda tudo falsificado, incluindo os abraços e os beijos e os apertos de mão, e os ... e os ... e os...maldito covid-19.
    .
    Tenha uma semana de Luz

    ResponderEliminar
  5. Anónimo14.4.20

    Muito bem, muito bem. So um p.s. Nos abraços bem dados (o qual eu e os meus irmãos somos peritos), tanto quem dá como quem os recebe sentem da mesna forma
    Vw

    ResponderEliminar