27 março 2016

Ao terceiro dia, conforme as escrituras

Quando o tempo fica melhor, os velhos ocupam os bancos do jardim em que me costumo sentar a ler jornais. Jogam às cartas e, desconfiados de tudo, especialmente das promessas de bom tempo, agasalham-se com boinas de lã e cachecóis tricotados pelas suas mulheres, nas caras só se vislumbram os óculos de modelos antigos e lentes muito grossas, bons para jogar às cartas.

Às vezes demoro-me a ver o jogo, sempre sem dizer nada porque um da vi um velho quase ser linchado porque estava de fora e desdenhou de uma carta jogada. Durante uns dias o velho que quase foi linchado não apareceu e, quando apareceu, ficou de fora durante muitos dias porque ninguém o convidou para parceiro. O jogo das cartas é a vida destes velhos, os rituais são antigos, o desdém com que lançam as cartas quando têm uma má mão de jogo, a violência com que jogam o às de trunfo, o esgar de gozo quando ganham um jogo por dois, tudo tem um ritual de coisa antiga.

Um destes dias apareceu uma rapariga com um microfone de uma televisão na mão, quis perguntar aos velhos que jogavam às cartas qualquer coisa sobre não sei quê. Os velhos que jogavam às cartas responderam por monossílabos, sem sequer olharem para a rapariga que fazia as perguntas, o olhar fixo nas cartas, lançadas com displicência, sinal de fraco jogo.

Tomei notas mentais, no dia em que eu for velho usarei óculos de boas armações, chapéu em vez de boina, lenço de seda em vez de cachecol tricotado e levarei sempre um livro para ler, isto no caso de não arranjar parceiro.

Se jogar às cartas, jogarei poker. Como sempre, aliás.

12 comentários:

  1. E as cartas serão KEM, nem outras serão admissíveis.

    Feliz de o rever, Pipoco.

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  2. Adoro ressurreições.
    Saravá!

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  3. Anónimo27.3.16

    E ainda dizem que a ressurreição não está provada cientificamente....

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  4. Isso do terceiro dia é que enfim, uma pessoa aqui deste lado esperou
    27-13=14 (noves fora 5, nem aqui), qual terceiro o quê. Mas que o abraçamos com a alma feliz, ai isso abraçamos!
    (Seu feioso, ir embora assim)

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  5. Sabe, tio Pipoco, os velhos gostam pouco de mudanças, porque já sabem bem o que querem, não é?

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    1. Anónimo28.3.16

      Os velhos só não gostam das mudanças que não lhes convêm, como qualquer um de nós. Por outro lado, se em novos gostarem, em velhos também gostarão.

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  6. Bem-vindo :) tinha acabado de pensar em si, na sua ausência, quando vejo este post nos feeds. Fique, escreva sobre velhinhos em praças a jogar às cartas, talvez apareçam os das damas, sobre velhinhas perdidas em aeroportos, sobre o que lhe apetecer, a delicadeza das suas palavras fez-me falta. Grande abraço.

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  7. Poker não dá, os velhos assim gastam a reforma toda.

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  8. Anónimo28.3.16

    Ufa...ressuscitou!! Julguei que tinha morrido no atentado no aeroporto...
    VW

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  9. Ha! nada como uma boa sueca, pelos vistos é transversal em todas as terras...

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  10. Bem retornado seja... Puxe uma cadeira e faça o obséquio de se sentar à nossa beira... Sentimos a sua ausência! Olhe que não o dizemos da ânimo leve.... Aceita um chá?

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