25 outubro 2015

Pipoco também descreve uma prova desportiva

Lá estive, eu e os meus Adidas Super Mega Boost Hiper Soundtrack Squash&Sauna, naquilo do Urban Trail em Sintra. Nove da noite, o Castelo dos Mouros como que suspenso na neblina e eu ali, a pensar que aqueles dez quilómetros eram coisa para meninos, com sorte limpava aquilo numa hora e ainda saía dali a tempo de beber um copo em São Pedro, na Taverna dos Trovadores, bom tempo, o tipo do microfone a mandar sair para fora dali as badochas que iam fazer a caminhada, que aquilo era território dos bravos da corrida e lá estava eu na linha da frente, coladinho à fita amarela, foi a única vez que estive na liderança do pelotão, o tipo do microfone a desejar boa sorte para aqueles doze quilómetros (doze?!!! não eram só dez?), a miúda com perneiras (soube depois que são meias técnicas, de compressão, ou lá o que é) a dizer que no Porto foram quinze, eu a olhar para o Castelo, tão lá em cima, eu a imitar os aquecimentos de quem parecia saber o que estava ali a fazer, a levantar os joelhos ao nível do tórax, a dar saltinhos, o tipo da Câmara a fazer a contagem decrescente e eu e as minhas meias de algodão e as chaves do carro e dois pacotes de açúcar no bolso a ser ultrapassado por um vendaval de gente a correr muito depressa, eu no meu ritmo lento, acelerando quando estava de novo no local de partida, os da caminhada ali a aplaudir-nos, tal qual mandou o tipo do microfone, eu a tentar manter uma postura garbosa, elas a piscar os olhos à minha passagem, aos gritinhos, eu acenando, os seguranças contendo aquele mar de miúdas sedentas de uma atenção, um pequeno sinal, eu já no Lawrences, que diria Eça disto de correr?, eu a pensar que um dia havia de gostar de dormir no Lawrences, porque não hoje? porque não agora? mas afinal apresso a passada, entramos na Regaleira, enquanto corro, o meu frontal iluminando a noite, pensava se me apeteceria ter aquela vida do Monteiro dos Milhões.

E a subida, senhores. A subida para o Castelo. Arfo, até que ouço uma senhora dizer que as escadas estão muito perigosas e escorregadias, o melhor é ir devagar. E sigo a passo, eu e as outras centenas de almas, um perigo estas escadas escorregadias, graças a Deus que tenho uma boa desculpa para ir a passo, Sintra luzindo lá em baixo, os frontais em fila indiana subindo a serra como se fossem milhares de vagalumes a passo lento, as conversas a finar-se, a cabeça a dizer que é melhor voltar para baixo, chego à saída do castelo e penso que agora é sempre a descer, afinal não, sobe-se até ao Palácio da Pena, lá em cima alguém diz que estamos no quilómetro seis e meio, nunca demorei tanto tempo a fazer seis quilómetros e meio, descemos agora , descer não é mais fácil que subir, o empedrado escorrega e os meus Adidas amarelos não foram feitos para isto, em São Pedro há uma senhora velhinha aos saltos que me diz que já falta pouco, agradeço a informação mas outras senhoras velhinhas já me disseram exactamente o mesmo lá atrás, a seguir está outra senhora aos gritos, a dizer que na rua dela ninguém pode ir a passo, que na rua dela quer ver toda a gente a correr, resigno-me, se a coisa é como a senhora diz pois que seja, corro a toda a velocidade, quando passo por ela berra-me aos ouvidos que na rua dela ninguém pode ir a passo, sigo infeliz, acabrunhado, puta da velha, queira deus que aquilo seja Alzheimer, diz que o Alzahimer faz confundir andar a passo com corrida veloz, chego à Volta da Pedra, muitos corredores começam a tirar os carros, imagino que terão desistido, não creio que tenham já cortado a meta e a mim ainda me faltam dois quilómetros, tenho um último assomo de dignidade e ataco, dois quilómetros fazem-se num instante, acelero na descida, sei que aqueles que ultrapasso ficam fascinados por esta minha ponta final, canto Aznavour e Brel, mais uma subida, a última subida e enfim a meta, estendem-me água e maçã desidratada, o Castelo dos Mouros lá em cima, rir-se de mim, o cabrão.

13 comentários:

  1. Caro Pipoco, se soubesse que estava por lá tinha desacelerado para o cumprimentar :)

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    1. Foi o eu primeiro trail. Não estava nada à espera de tamanha dureza. Mas não me vou esquecer tão depressa do ambiente desta prova.

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  2. Anónimo25.10.15

    Épico, caro Pipoco. Mas, como em todas as epopeias, há sempre alguém que assume o papel de anti-herói, certo?
    Ou, como diz mamãe sempre que vê uma maratona: «os últimos é que deviam ganhar porque, coitados, fizeram muito mais esforço, custou-lhes muito mais, do que ao lambão que vai levar a medalha».
    Belo texto, caro Pipoco, e isso é mesmo o que mais interessa.

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    1. É bem verdade. O esforço foi imenso e o único objectivo era acabar. E acabei.

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  3. Cláudia Filipa25.10.15

    Chego aqui com alguma má vontade (o seu Sporting fez aquilo que fez ao meu Benfica). Mas está aqui este texto... para dizer a verdade o anterior já me tinha levado metade da má vontade, este acabou com a outra metade, comecei e acabei a rir.
    Parabéns por ter ido até ao fim da corrida e pelo relato (tão bom o relato)
    (E...aiii... pronto...felicitações de uma benfiquista a um sportinguista que deve estar feliz da vida)

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  4. Do que gostei mais foi da puta da velha. Adorei o relato e gostei mais ainda de saber q tem sentido de humor. Tome la um beijo

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  5. Anónimo25.10.15

    "...queira deus que aquilo seja Alzheimer..."
    A-DO-RO!

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  6. Anónimo26.10.15

    "...elas a piscar os olhos á minha passagem...". Nem com "a corda ao pescoço" o Tio perde o humor.
    Amei a descrição.
    VW

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  7. Para a próxima avise que eu empresto-lhe o meu Jack Russell, conhecedor dos meandros sintrenses, e que não lhe dá outra hipótese senão ir em passo acelerado serra acima.

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  8. Anónimo26.10.15

    Que moda... Caminhadas para Santiago, traíls e maratonas

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  9. Anónimo26.10.15

    A mim não me enganas tu.

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  10. Anónimo26.10.15

    Li na diagonal, tio.

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  11. Parabéns pelo objectivo atingido!
    [e obrigada pela descrição deliciosa, sendo ela baseada apenas em factos ou com alguma "ficção" à mistura!]

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