21 setembro 2015

Burnay de Bettencourt

O Burnay de Bettencourt é o mais velho de todos nós. Homem de gostos razoavelmente excêntricos, gosta de ir a um certo sítio em Genebra onde escolhe o tabaco para os seus puros, esta folha de tabaco para o filler, o capote será com aquela outra, a capa, a mais nobre das camadas, sairá da folha de tabaco que melhor lhe cheirar, continua a não dispensar o bom corte do alfaiate de Londres, o velho Mister James, que lhe atenua com saber, vai para trinta anos, os efeitos do excesso de vinhos do Douro e queijos de Azeitão. O Burnay de Bettencourt não desdenha o meu tecto, acredito que lhe conquistei os favores com uma minha velha receita de revueltos de farinheira de porco preto e por lhe servir sempre o vinho certo, mas na verdade o Burnay de Bettencourt faz-me saber que aceita fazer o longo caminho que vai da São Pedro de Sintra à Lezíria por eu ser o único (o único, seus impostores!) que não lhe gaba todos os gostos excêntricos, a não ser quando o assunto versa livros ou, em certas ocasiões em que me sinto mais frágil, vinhos do Porto de anos antigos, e desdenha do tempo gasto nas suas rotinas demasiado caras, mesmo para mim.

Mal sabe o Burnay de Bettencourt que passei o meu sábado a podar as minhas árvores, há ali lenha para meio inverno, recebi-o no domingo, a ele e aos meus amigos, desses que, por mais mulheres, mais vinho ou mais temporadas sem nos vermos, nada abala, soubesse o Burnay de Bettencourt que as mãos que lhe serviam o vinho eram as mesmas que tinham serrado troncos grossos em cima do telhado, soubesse o Burnay de Bettencourt que ainda ontem estava de calções e em tronco nu aquele que agora lhe dava a provar um torricado (é googlar, hereges...), camisa branca e calças de caqui, e calculo que as coisas não fossem como são, que isto das amizades do Burnay de Bettencourt não aguentam tudo.

Embalados por uma prova cega de aguardentes velhas, falávamos de Casanova, Giacomo Casanova, o Burnay de Bettencourt a insistir que Casanova se tinha escapado por umas cordas de lençol desde a cela do Palácio Ducal para a Piazetta, eu a assegurar-lhe que tinha passado por cima da sala quadrada, o tecto da sala quadrada repuxado por aço ainda na minha memória, afinal eu estive não há muitos meses na cela onde Casanova esteve preso e para estas coisas de escapar de celas ainda tenho memória, nunca se sabe quando estaremos precisados, eu a assegurar que foi o próprio guarda que lhes abriu a porta, cuidando que Casanova era um figurão que tinha ficado a trabalhar até serem desoras, o Burnay de Bettencourt a insistir que não, a rir-se para trás, o guarda a abrir-lhe a porta, já viram isto rapazes? eles a concordar que o Burnay de Bettencourt era capaz de ter razão, eu na minha certeza mas atalhando "e o sacana do Carrillo, aquilo é que é um molho de brócolos..." e todos, enfim concordantes, a dizer que sim, que o Carrillo faz muita falta mas aquilo é muito dinheiro.

A amizade é para as ocasiões.

25 comentários:

  1. Anónimo21.9.15

    Tanta imaginação, tanta cagança...

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  2. Anónimo21.9.15

    Olá tio! Já comi muita torrada com azeite e outros temperos e acompanhamentos, mas nunca lhe tinham chamado torricado. É bom aprender mais sobre coisas boas!

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    1. O torricado é mais que pão torrado com azeite. É pão levemente torrado, com azeite, bacalhau e alho entalhado.

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    2. fez um verso sem querer :)

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    3. Anónimo23.9.15

      Boa noite, tio! Eu, casca grossa me confesso e andava cá nos meus pensamentos e a pensar se foi agora que andou a podar as suas árvores. Além eu só comer torradas com azeite em vez de torricados, também não podo no fim do Verão - esgalho.

      Tenho de me "enfinar" senão nunca mais o tio me entende, até pode pensar que vim doutro planeta.

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    4. Anónimo24.9.15

      O tio aprende muito com os seus comentadores. Sempre serve para ir podando ou esgalhando os seus erros, digo, falhas.

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  3. A mim o seu sábado parece-me muito mais interessante que o seu domingo.
    Mas fiquei com uma curiosidade, não, duas: e de livros, falaram?
    E pelo seu Caminho, ele interessou-se?

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    1. Eu escolho as pessoas com quem partilho El Camiño, Susana. Dormir em camaratas e calcorrear uma trintena de quilómetros por dia com uma mochila às costas não é coisa que se partilhe com esta gente (ainda se fossem as noites no Parador de Santiago...).

      E sim, falámos de livros. Continuo à procura de um certo Nabokov.

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    2. Obrigada por me ter matado a curiosidade. Eu também já procurei esse seu Nabokov quando falou nele num post entretanto exterminado, mas não encontrei o Nabokov e agora encontrar o post será ainda mais difícil.

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  4. Anónimo21.9.15

    É só coisas velhas por aqui... parece o sótão do avô.
    Boring...

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  5. Cláudia Filipa21.9.15

    Pipoco, se uma das coisas, ou a principal, que o seu (amigo?) Burnay de Bettencourt valoriza em si, é precisamente o facto de não lhe gabar todos os gostos excêntricos, provavelmente, também aguentaria bem o relato do que fez durante o seu sábado, sem passar a olhá-lo com outros olhos (se é que não desconfia). Ou será que quer dizer que, tal como a amizade é para as ocasiões, também nem todos os amigos são para todas as ocasiões. Seja como for, fez bem em mudar de assunto relativamente ao Casanova, um bom anfitrião deve salvar os convidados de eventuais embaraços e promover continuações felizes.


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    1. Falar de bola é o mais eficaz quebra-gelo que conheço, Cláudia. Muito mais que falar do tempo.

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    2. Cláudia Filipa21.9.15

      Sabe, não consigo resistir a uma certa vaidosice quando, afinal, percebi.
      Boa noite, Pipoco.

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  6. Eis que chega o dia em que, atónita, lhe digo: o Pipoco não percebe muito da poda, pois não? Que árvores são essas que andou a podar a meio de setembro? Cortou-lhes umas braças, vá, isso de lhe chamar poda é uma liberdade literária.
    Em setembro as podas não podem ser profundas...

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    1. Podo quando posso, Mirone...

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    2. Não faça maldades às árvores, pobrezinhas.
      O golo soube a pouco, mas valeu bem os três pontos.

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    3. vinha fazer-lhe a mesma pergunta. quem poda em setembro?

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    4. Anónimo22.9.15

      Quem provavelmente nunca podou.

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  7. Anónimo22.9.15

    O Tio teve mais sorte do que eu. No sábado estive o dia todo a guardar lenha. Ao fim do dia parecia que tinha estado o dia todo no ginásio a fazer musculação.
    VW

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  8. Trabalho com algum lazer faz bem!

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  9. Até o Burnay gosta de dar uma mãozinha nas vindimas lá na quinta. Desde que ninguém esteja a ver, é claro.

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  10. Anónimo24.9.15

    Ó Pipoco, tenha dó do B de B que , anunciado como o mais velho de todos nós, está a envelhecer aqui no post há três dias...e três dias na mesma página é uma impaciência e um suplicio.
    Vá lá...mude o post, por favor. Não pense que o bónus de deixar um post muitos dias ( em blog de Pipoco três é muito) compensa os que nos tirou !!!

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  11. Caro Pipoco, isso de não haver botão para navegar para posts mais antigos é de propósito para virmos visitar mais vezes e assim acompanhar dia-a-dia, ou sou eu que estou a perder faculdades ópticas?

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