03 setembro 2015

As coisas são como são

Primeiro foi aquilo da guerra e morrerem muitos meninos, mas é da natureza da guerra morrerem meninos e aquilo era lá para os lados do Iraque ou do Afeganistão, esses lugares muito longe, que têm lá as suas tradições de andar sempre aos tiros, as fotografias da guerra são muito parecidas umas com as outras, e nós, e eu, seguimos cá com as nossas vidas.

Depois foi aquilo das pessoas nos barcos, alguns salvavam-se, outros não, mas aquilo eram números de pessoas que tinham morrido, não havia fotografias nem nada, e quando havia eram só uns barcos vazios e umas roupas e uns sapatos desirmanados a boiar sem ninguém lá dentro e nós, e eu, seguimos cá com as nossas vidas.

Depois foi aquilo de Palmira, que é uma espécie de tempo de Diana mas sem Évora à volta, parece que aquilo era uma coisa antiga e as pedras, merecendo-nos respeito porque eram pedras de valor, afinal não passam de pedras, está claro que é uma pena para o turismo de Palmira, onde quer que seja Palmira, e nós, e eu, seguimos cá com as nossas vidas.

Depois foi aquilo dos refugiados a chegar à Hungria, que é um sítio que também é lá muito longe, diz até que já foram comunistas, e as fotografias eram de polícias a bater em pessoas, olha a novidade, isso até nós cá temos, havia também fotografias de arame farpado mas via-se bem que qualquer bom alicate cortava aquilo num instante, havia também um caso com umas pessoas dentro de uma camioneta, mas as únicas fotografias que havia era da camioneta a ser levada por um reboque, e nós, e eu, seguimos cá com as nossas vidas.

Agora há isto da fotografia do menino na praia. Está ali debaixo dos nossos olhos, ainda vestido e calçado. E nós, e eu, embora desta vez nos custe mais um pedacinho, seguiremos cá com as nossas vidas. Muito emocionados e revoltados, que a nós quem nos tira a revolta e a emoção tira-nos tudo...

(e havemos de nos ir entretendo a comentar que aquilo é tudo malandragem do Estado Islâmico, pois se eles têm todos bigode e ar façanhudo, que aquilo é gente que assim que se veja com subsídios hão-de atacar a nossa fé cristã, que eles vêm é ocupar os nossos empregos, pobres de nós que nem temos dinheiro para comprar aquelas camisolas do Real Madrid e aqueles telemóveis que eles trazem).

32 comentários:

  1. Esperava muito mais de um texto seu sobre este assunto.

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    1. As pessoas esperam sempre mais de mim. É muita pressão, sabe?

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  2. Estou a ver que o espírito do caminho se foi, à medida que o espírito corporativo volta a entrar-lhe nas veias. Esse cinismo fica-lhe mal, nada tema.

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  3. Entretanto, surge a fotografia de um bicho maltratado ou no corredor da morte por ter magoado um menino de tamanho semelhante e tudo prossegue como dantes ...

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    1. Anónimo3.9.15

      Tenho-a como pessoa mais inteligente. Vou acreditar que este desabafo foi coisa momentânea.

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    2. Alguma dúvida de que é isso que vai acontecer na vida da maioria dos indignados de circunstância ou de secretária que se limitam à indignação via rede social... Não me pareceu que a profundidade do texto fosse além desse tipo de reflexão. Peço perdão se exagerei na ironia.
      Quanto ao assunto em si ou à minha intervenção na sociedade com cidadã consciente não ando por aí a publicitá-la com partilhas no facebook ou redes sociais.
      Uso as redes sociais como entretenimento, apenas. Para o resto acordo cedo disponibilizo o meu tempo e disponibilizo-me a mim.

      ps Esta resposta é para o anónimo. Acho que o Pipoco tem a dimensão necessária para compreender onde quis chegar

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    3. Concordo inteiramente com a Ó menina

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  4. Sim, li comentários que se indignavam por haver refugiados com telemóvel e ténis nike. Teriam de fugir de fugir descalços com a roupa do corpo, de preferência rota e muito suja, ou sem roupa mesmo?
    Isso do bigode e ar façanhudo é que foi novidade, uma espécie de uma coisa nova por dia todos os dias, não é assim que lhe chama?


    (esperava exactamente este texto, só estranhei a demora)

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    1. Lá está, alguém que espera de mim exactamente aquilo que eu posso dar. Um bem-haja.

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  5. Anónimo3.9.15

    O seu texto, caro Pipoco, reflete (denuncia?) a voragem (a hipocrisia, o «umbiguismo»...) do mundo atual, que se compadece com causas desde que seja só o tempo que dura, vá, um telejornal...

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  6. Denuncie o que denunciar, este seu texto diz a verdade que teimamos em ignorar. Subscrevo.

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  7. Generalizando,
    Onde quer que se sintam seguras - (...) - as pessoas serão indiferentes.

    Susan Sontag (Olhando o Sofrimento dos Outros)

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  8. “E nós, e eu, seguimos cá com as nossas vidas.”
    Mas seguimos com um ligeiro desvio à rota inicial, impresso pelo eco destas imagens; seguimos, acredito, olhando mais atentamente para o que temos e pondo mais coração no que fazemos.
    Ou, ainda, seguimos com um desvio maior e acolhemos pessoas refugiadas nas nossas casas, nas nossas vidas. Nós também somos assim. E as coisas são, de facto, como são.
    Um abraço a todos.

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  9. Anónimo3.9.15

    Mais uma vez fraqueja, Pipoco. O cinismo que o salva não pega, é uma justificação que não nos convence. Fica-lhe mal, fica, concordo absolutamente com Isa.
    Neste momento do blogue, os seus comentadores estão muito melhor na caixa que o "tio" no post.

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    1. Anónimo4.9.15

      Está certíssimo. Pensei o mesmo.

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  10. é lá longe a gente continua cá na nossa vidinha, e os saldos já acabaram por isso deixa cá ir ver as montras, contando, é claro, que não me venham pra cá com guerras e obrigar a fugir que isso agora não me dava jeito nenhum.
    Pimenta nos olhos dos outros...

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  11. A questão é que o post é terrivelmente realista. Continuamos todos a lidar muito mal com a verdade.

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  12. Anónimo4.9.15

    Aquelas pessoas não são pobres (pagam bastante por travessias em barcos rudimentares e sobrelotados), aquelas pessoas estão só a tentar mudar de vida para sobreviver à guerra. Estão desesperadas. A maioria de nós indigna-se mas fica impotente.

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  13. Anónimo4.9.15

    Não me parece que este seja mais um assunto que se vai esquecer rapidamente.

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    1. Só não será esquecido porque continuam dia após dia a entrar na Europa (ou a tentar), senão seria esquecido tal como foram os outros cujas barcaças iam naufragando no mediterrâneo, tal como foram esquecidas as meninas raptadas pelo Boko Haram que há uns tempos deixaram o mundo de cartaz nas mãos a pedir que as devolvessem... Enquanto os problemas não estiverem fiscamente à nossa porta tenderemos a esquecer depressa.

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    2. Anónimo4.9.15

      Pois mas neste caso continuarão a chegar imagens terríveis porque são muitos e os que sobreviverem não têm para onde ir, nem terão tão cedo.
      Ao Pipoco, depois de ler este post, desejo que lhe calhe uma família à porta. Para ver se o cinismo ainda assim o salva.

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    3. Mas o Tio Pipoco só constatou a verdade...
      Isso não o torna precisado de salvamento.

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    4. Anónimo5.9.15

      Acho que o anónimo não percebeu o texto...

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  14. Juliana A.5.9.15

    É claro que não nos preocupamos com o que não vemos, não sabemos ou não nos afeta diretamente. Seria impossível atender todas essas situações mais o nosso dia a dia. É assim em qualquer parte do mundo. Parece-me pouco produtivo perder-se tempo a avaliar a semântica, o nível de ironia, quem demonstra mais indignação e emoção. Caro pipoco opinou, pode fazê-lo e tem um ponto de vista realista, goste-se ou
    não. Se acolhessemos uma família de refugiados todos pensaríamos se ainda teríamos
    os nossos pertences ao deixar as pessoas em casa e regressar depois de um dia de
    trabalho.
    Acredito que os bloggers se se vejam na obrigação de fazer um post emocionado para
    não parecerem uns cabrões levianos que não ligam nenhuma a esta coisa da ajuda
    humanitária. Mas caro pipoco, não é que um post disruptivo e inconformado é bem
    capaz de abanar mais o burgo e, quiçá, trazer mais donativos? Boa.

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    1. Vinte pontos para este comentário. Certeiro.

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  15. Cláudia Filipa6.9.15

    Olá, Pipoco.
    Há não muito tempo, dirigia-me para coisas da minha vida e um pouco mais à frente ia um senhor já com alguma idade, também lá na vida dele. De repente, vejo-o tropeçar e cair. Iam umas pessoas a passar, olharam, olharam e continuaram. Tinha o lado da cabeça que estava no chão, cheio de sangue. Liguei para o 112, pedi num café que estava mesmo ao pé, toalhas para servirem de almofada (deram) e fiquei ali a tentar tranquilizá-lo e a segurar-lhe na mão até a ambulância chegar. Durante este tempo, muita gente passou, parava para a bisbilhotice habitual e para o respetivo lavrar de sentença. A pouco e pouco, foi-se juntando um agrupamento, devem ter perdido a pressa, quando perceberam que já estava alguém a tratar do assunto, mas, pelo sim pelo não, não perguntaram se era preciso alguma coisa.
    Não me é nada difícil imaginar, hoje, aquelas mesmas pessoas que não foram capazes de ajudar um homem caído no chão e ferido, em frente à televisão, indignadas, que parece impossível, mas ninguém faz nada, coitadas daquelas pessoas e por aí fora e se o lerem Pipoco, talvez até fiquem muito revoltadas com o seu "cinismo", é um desalmado, homem. E até não me é nada difícil imaginar algumas delas a quererem "acolher alguns daqueles pobres coitados", assim levadas nestas ondas de solidariedade instantânea.
    As pessoas, não são cães de louça, dão muito trabalho, precisam de vidas dignas para além dos ímpetos solidários. Precisam de futuro, que garanta, mais, muito mais que sobreviver em miséria que só muda de local. Eu não acolheria refugiados. Eu sei que quando me passasse o ímpeto solidário, podia ficar ali, sem saber o que fazer à vida com as pessoas que tinha acolhido. Eu não teria capacidade para dar a resposta necessária. Para isso existem instituições com as quais posso colaborar. Não, eu não acolheria ninguém. Mas garanto-vos uma coisa, se caírem na rua e eu estiver a passar vou ajudar-vos a levantar, ou fico a segurar-vos na mão o tempo que for preciso. É pouco? mas está ao meu alcance, sem ser preciso aparecer nas notícias das oito.

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  16. Anónimo6.9.15

    Curioso, querido tio, encontrar aqui neste seu post um dos pequenos cruéis dilemas que me estilhaçam a coluna vertebral: como é possível dia após dia continuar nesta vidinha insonsa de cobertura de chantilly como se nada de horrendo se passasse no mundo.

    A verdade é que as marés não mudaram, não ocorreu um eclipse solar que nos tenha mergulhado durante um ano numa escuridão gélida e as aves nem sequer cessaram de piar e as plantas de crescer.

    Talvez o mundo não precise de ser salvo a menos que o chantilly necessite de ser melhor conservado para não azedar ou secar.

    Podemos dizer muito mal deste país e povo, mas todos sabemos porque agradecemos estar aqui onde se pode sair à rua e simplesmente ir passear, ir beber um café ou sentar num banco livremente. E isso não tem preço.



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