02 maio 2012

As estrelas que caem do céu

Se eu mandasse nisto, ou melhor, quando eu mandar nisto, inventarei uma lei que proíba os escritores de sair de casa, de se misturar com o povo comum, havia de lhe erigir um castelo altaneiro de onde não pudessem escapar-se, ficariam ali a produzir as suas obras, como aqueles monges do Nome da Rosa e a coisa havia de ser exactamente como eu estou a dizer, assim evitaria ter que conviver com as situações que se deram ontem na Feira do Livro, aquilo de os escritores autografarem os seus livros, "como se chama?, ah, Pipoco, belo nome" e sai uma dedicatória, "Para o Pipoco, com um abraço do - inserir nome do artista", e assim se perde uma aura, assim se perde o estatuto de mito inalcançável, era ver o Padre Borga que me habituei a respeitar enquanto expoente máximo da entoação desse hino que é "Põe tua mão na mão do teu Senhor", e agora lá estava ele sentado, eu a vê-lo de costas e a reparar nas suas calças demasiado puxadas para baixo, acontecia que o bom homem, em se inclinando para a frente de forma a afagar convenientemente a cabeça de uma criancinha levada pela mão de sua avó, expunha diante dos meus olhos a parte final das Padreborguianas costas, desnudadas, permitindo a visualização da parte inicial de vocês sabem o quê, depois era o Gonçalo M. Tavares a ser cumprimentado por umas senhoras muito anos sessenta, ele com cara de quem pagava para não estar ali, mas tinha mesmo que as cumprimentar, elas gozando o momento heróico que é ter o escritor por sua conta por mais uns segundos, beijando-o e dizendo segredinhos, eu a ver aquilo, o Gonçalo pedindo-me solidariedade com o olhar, a seguir estava a Senhora Dona Helena Sacadura Cabral, uma Senhora, aguentando estoicamente os apertos de mão de quem está ali só para lhe comunicar que sente muito, um pouco mais à frente estava o Sérgio Godinho, pois se até aquele cujo nome não se pode pronunciar escreve livros, porque não havia o Sérgio Godinho de escrever?, umas senhoras de cabelo curtinho e com cara de quem ocupou terras no Alentejo nos loucos anos do PREC a fazerem de tudo para que o Sérgio Godinho se lembrasse delas, a dizer que lhe levaram flores numa festa do Avante de oitenta e dois, ou seria oitenta e um, Maria Zulmira?, o Sérgio Godinho a lembrar-se de repente, claro que sim, tudo a acabar em bem, mas no final, em verdade vos digo, não é bom ver aqueles que apreciamos a passar por estas afrontas.

11 comentários:

  1. E não vimos a MRP... :D

    ResponderEliminar
  2. Pólo, nada se compara a respirar o mesmo ar que o Padre Borga.

    ResponderEliminar
  3. Ali, no entremeio entre a fartura e a ginginha! :P

    ResponderEliminar
  4. Isso que o Pipoco visualizou no Padre Borga em bom brasileiro chamar-se-ia "pagar cofrinho", por a imagem se parecer bastante com a ranhura para eintroduzir uma moeda num pequeno cofre (isto dependendo, claro está, da quantidade de pele que se vê). Acho esta expressão, no mínimo, encantadora.

    Aqui fica este pequeno momento de partilha de sabedoria.

    ResponderEliminar
  5. Anónimo2.5.12

    Relatos deste são Históricos e não, não do Pentateuco; a vida borbulhante e o gosto pela diferença.
    Fantástico.

    Maria Helena

    (um dia contar-lhe-ei o que a minha Avó dizia do Amadeo de Amarante)

    ResponderEliminar
  6. ás vezes és dificil de ler homem, fico com falta de ar

    ResponderEliminar
  7. O que eu me ri com isto!
    Pipoco no seu melhor.

    ResponderEliminar
  8. Por isto mesmo é que, em eu me cruzando com o tio Pipoco alí na Cufra, mesmo ficando toda roidinha por dentro, não me chego a si para lhe pedir um autógrafo e lhe espetar um beijo repenicado na bochecha.

    ResponderEliminar
  9. Que dizer.
    Obrigada sr.Pipoco, por mais um belo texto.

    ResponderEliminar
  10. Mafalda2.5.12

    A Helena Sacadura Cabral é mesmo uma senhora. Quando passei por ela, por entre os abraços que lhe ofereciam, senti que estava perante uma das grandes mulheres deste país. Simplesmente pela atitude estóica que a manteve ali a receber os pêsames de uns e outros.

    ResponderEliminar
  11. Devia haver uma lei que proibisse os escritores que veneramos de produzirem palavras que não as escritas, ou de mostrarem o rego.
    Pois se há uns que escrevem divinalmente e se enterram na oralidade, decepcionando-nos profundamente. Outros há que imaginamos esbeltos e atléticos e vai-se a ver têm pelos no rabo (não é claramente o caso do p. Borga), mas poderia bem ser o caso do Gonçalo M. Tavares.

    ResponderEliminar