30 abril 2018

Ballade pour Mironne

E lá estávamos nós, o mar agreste da costa do Paraguai a fustigar-nos, lembro-me que pedimos um Beaujolais, sempre apreciaste os vinhos velhos, depois, era o tempo da tua mania dos vegeterianismos, encomendaste uma salada, uma magnífica Calabreza, do meu bife tártaro bem passado só recordo o travo magnífico a hortelã das Índias, mais tarde o chefe de sala do Don Julio havia de nos escolher os melhores lugares, mais perto da orquestra não podíamos estar, ainda mal nos tinham servido as entradas, uma canjica como já não se faz, e já os violinistas atacavam Piazzola, esse mestre dos boleros que tantas vezes dançámos juntos, os nossos corpos colados e que Hemingway tão bem contou nessa última obra que nos legou, esse tremendo "A Leste do Paraíso", a história triste dos homens que nunca foram meninos, era o tempo em que éramos felizes e não o sabíamos.

29 abril 2018

São assim os Dias da Música

Velhas senhoras que acordaram cedo para dar um retoque nas cabeleiras louras, que dormitam boa parte do concerto mas não é por isso que são menos entusiastas na hora do aplauso quando termina o último andamento, cavalheiros que se impacientam com os dois minutos de atraso que o início do concerto já leva, é coisa para os fazer correr para o concerto seguinte e mesmo assim não apanhar os melhor lugares, casais de anciãos que riscam freneticamente o programa dos concertos, assinalando com um xis os concertos que já despacharam, desenhando círculos em volta dos que ainda faltam, velhas senhoras que cumprimentam com um só beijo quem está na fila e aproveitam para avançar dois lugares, malas de modelos antigos a marcar lugares para as amigas que se atrasaram, cheiro a perfumes de senhora que me lembram a minha avó, tosses cavernosas nos momentos de pianíssimo.

28 abril 2018

Estava aqui a ver os seguranças do Kim Jong-un a correr ao lado da limousine Mercedes

Nada saberás dela enquanto te focares na forma como ela sai do carro de dois lugares e gere a vontade própria da saia demasiado curta, nada saberás dela enquanto apreciares a forma eloquente como se refere à sequência de Fibonacci para justificar uma passagem de Garcia Marquez, nada saberás dela enquanto te deslumbrares com a tranquilidade com que gere um straight demasiado escasso para a parada da mesa, nada saberás dela enquanto te entusiasmares com o dilema de ela se parecer mais com Grace Kelly ou com Elisabeth Taylor.

Mas um dia , Ruben Patrick, ela vai abanar-te a alma, os olhos dela faiscarão, será um dia de chuva grossa, ela dir-te-à com voz calma e pausada que não passas de um palerma, que nada vês senão o que é visível aos olhos, é aí que o sentimento de perda se agiganta, é nesse momento que ter darás conta da urgência de pensar depressa, implorarás aos céus que não seja demasiado tarde, será então que ela decidirá, uma vez mais, que te dará uma outra oportunidade de mostrares o pouco que vales, é nesse preciso momento que ela tomará conta de ti e tu nada mais poderás fazer senão pegar-lhe na mão e, em vez de te embasbacares com o efeito que a chuva molhada produziu na camisa branca demasiado fina, perceberes enfim que o essencial é invisível aos olhos, ou lá o que é.

27 abril 2018

Esta noite sonhei com Lamborghinis roxos

Tivesse eu disponibilidade, não fosse ter que ir ali comprar jornais, não fosse faltarem-se trinta páginas para terminar o último Umberto Eco, não fosse ter apalavrado ir aos Dias da Música, não fosse estar já comprometido para almoçar uns filetes de peixe-galo, e havia de passar por aí para espantar esses fantasmas que (ainda) te atormentam, havia de me posicionar de frente e ordenar-lhes "eh fantasmas, vamos a sair, é andar...", os fantasmas haviam de se desorientar com a minha voz tonitruante, haviam de sair cabisbaixos, sussurrando desculpas esfarrapadas, que não tinha sido por mal, que a natureza dos fantasmas é mesmo essa, atormentar as pessoas, está-lhes no sangue, eu havia de me assegurar que eles não ousavam regressar, tu havias de me agradecer os trabalhos, vir de tão longe, com tantos afazeres, largar os jornais e o Umberto Eco, os Dias da Música e os filetes de peixe-galo para vir espantar fantasmas, não saberias como agradecer, eu diria que não foi nada, ora essa, temos que ser uns para os outros.

24 abril 2018

E andamos nisto

Voltasse ela, Ruben Patrick, entrasse ela por aquela porta agora, teria meia hora para mudar a tua vida, e constatarias que ela era outra pessoa, havia de cheirar a outra coisa que não aquilo que te lembras, não saberias onde foi ela arranjar aquele pequeno corte no dedo mindinho, não reconhecerias o modelo de telemóvel que ela tem agora, perguntar-te-ias por que lia ela agora Lobo Antunes, estranharias a nova cor do cabelo e ela desabotoar agora os dois botões cimeiros da camisa.

Elas, ao contrário de nós, mudam demasiado.

23 abril 2018

Post das oito

E de repente, a meio de Die Zauberflote, um ressalto na estrada desconecta o aparelho que tem quase todas as músicas da minha vida e passa para o rádio, para uma música que me faz recuar no tempo os anos suficientes para eu voltar ter nos pés uns velhos Adidas Nastase, o Blitz à terça e o Independente à sexta debaixo do braço, uma boleia numa Yamaha DT, um pólo preto Benetton, umas calças de ganga Wrangler, uma máquina fotográfica Zenit onde só usava rolos a preto e branco e comprei em Bratislava, ainda Bratislava ficava na Checoslováquia, um blusão de penas Duffy, os A-Ha e os Alphaville, o Jordão e o Damas, um marcador de livros que era um bilhete de entrada para a casa do Kafka.

Quando acabou a música, abrandei para os regulamentares limites de velocidade, dei um jeito ao aparelho que tem quase todas as músicas da minha vida, os génios devolveram a flauta a Pamino e Papageno, sorri e pensei que estes tempos não são piores.

22 abril 2018

Mais um da série "oh, tão bonito..."

O amor, Ruben Patrick, não é aquilo que vem escrito nos livros do Nicholas Sparks, não são os close-up em plano fechado do tipo de calças de ganga arregaçadas e camisa branca correndo na praia, à beira-mar, para os braços da miúda de caracóis negros, a imagem em câmara lenta, os lábios que se tocam, os dentes perfeitos, o sol poente em fundo, a escala de sépias a potenciar o momento, não é o tipo a carregar a cesta de piquenique da carrinha Volvo das grandes, os filhos vestidos de igual a estender na relva a toalha aos quadrados azuis encarnados e brancos, não é o capítulo treze da carta de Paulo aos Coríntios, o amor é descalçar os sapatos para não a acordares quando se atrasa o último voo do Funchal, é beber sangria de frutos vermelhos ao jantar porque só vendem um jarro inteiro, é não te esqueceres de trazer alho francês nem courgette, é não passar dos cento e quarenta na autoestrada para o Algarve mesmo que ela esteja a dormir, é ser moderadamente efusivo quando o Sporting ganha ao Benfica, é ficar a olhar para o mar sem dizer nada durante meia hora e isso não ser um problema.

20 abril 2018

Está de volta o post das oito

Gosto de afastar a ementa em vez de colocar os óculos que ficaram em casa, de ler blogs de antigamente, de tentar explicar coisas da física num guardanapo de papel, de fazer de conta que não sei onde deixei as coisas (mas sei), de arremessar pinhas e ver o meu cão ir buscá-las ao meio das giestas, de tomar banho de água fria, de carros que andam depressa mas travam bem, de cantar músicas do José Cid quando ninguém está a ver, de jogos que o Sporting ganha nos penalties, das músicas do Streets of Fire quando conduzo em rectas do Alentejo, do Musée d'Orsay quando não estão lá chineses, de estar a ler muitos livros ao mesmo tempo, de jantar sozinho em Madrid e acompanhado no Porto, de pessoas que me abraçam com força, de comer fruta das minhas árvores, que me perguntem se preciso de alguma coisa e eu respondo que não, até amanhã, de cerveja gelada bebida pela garrafa, do sketch do "homem a quem parece que aconteceu não sei quê", de perder um jogo de xadrez com pessoas a quem eu ensinei as regras.

Não gosto do Berlin (do La Casa de Papel) nem de ir e vir a Londres no mesmo dia.

19 abril 2018

Em verdade te digo, Ruben Patrick

Quando, muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, em vez de te recordares daquela tarde remota em que teu pai te levou para conhecer o gelo, escolheres recordar-te dela, não relevarás os humores demasiado voláteis nem a incorrigível atracção que ela tinha para músicas ruins, eliminarás das tuas memórias a maneira quase enternecedora como ela ensaiava manipulações deliciosamente primárias, olvidarás os dias de silêncio que ela te reservava cuidando que te castigava (e tu a beber gin e a fumar Cohiba Lanceros...), sequer recordarás as pequenas tropelias com que ela escolhia fazer-se notar nos momentos mais inoportunos dos teus dias demasiado ocupados.

O que recordarás, jovem Ruben Patrick, é que ainda não te apareceu outra que se batesse como ela.

15 abril 2018

Post muito lindo escrito numa manhã em que era para ir andar de bicicleta mas afinal não

Às vezes subo as escadas do sótão, escolho ao acaso um livro que me acompanhe nestes dias de chuva, sento-me com vista para as bátegas grossas que regam a tangerineira que plantei no domingo passado e às vezes escolho um livro comprado há muito num alfarrabista que se calhar já não existe e às vezes o melhor do livro são os sublinhados do antigo dono do livro, por exemplo, os deste Dostoievski são escritos a tinta permanente, há partes em que a página seguinte serviu de mata-borrão, quase me emociono a pensar que pessoa será essa que escreve a tinta permanente em Dostoievski, anotações que fazem tanto sentido que me fazem ler "O Jogador" duma maneira diferente de todas as outras, como se fosse levado numa nova direcção, cada página é uma piscadela de olho de alguém que não conheço, mas que deixou, como se fosse uma pista, um marcador que é um bilhete para "Turandot" no São Carlos, ainda no século passado.

14 abril 2018

Se...

... todos os semáforos estiverem verdes desde o Campo Grande ao Rossio, se o Manuel Fernandes marcar um golo amanhã no Restelo, se os Pink Floyd passarem na Rádio Amália, se Fermina não fizer esperar Florentino, se o homem do café se lembrar que eu não preciso de açúcar, se Ilsa Laszlo não embarcar no avião para Lisboa, se eu acabar Ulysses esta semana, se me ocorrer onde raio guardei o vinil da Paixão Segundo São Mateus, então sim, ponderarei aceitar esse convite para me explicares nem sei bem o quê.

Esta noite sonhei com Lamborghinis roxos

Não é por causa do cheiro a ambientador de pinho que penduras no retrovisor do carro demasiado potente para as tuas mãos, não é por causa do Paulo Coelho que me pareceu ter vislumbrado num relance dos interiores da tua mala, não é por causa de deixares o telefone em cima da mesa enquanto jantas no melhor restaurante que por estes dias há em Lisboa, não é por preferires as águas quentes de resorts demasiado caros às montanhas que demoram a subir, nem sequer é por começares as frases com "é assim...".

Nunca tentes entender a minha lógica, ela é de geometria variável.

11 abril 2018

Os problemas das mulheres

Usarem fotografias dos bons velhos tempos para se apresentarem nas redes sociais.

(acreditando que nós não acrescentamos, com um sorriso benevolente, as mazelas que faltam...)

De cada vez que ouço dizer nas notícias...

...que Moscovo fez não sei quê, pergunto-me sempre como é o tipo consegue ter tanta influência estando fechado na Casa da Moeda.

09 abril 2018

Em verdade vos digo

Um homem que faz com que Jorge Jesus pareça um gentleman é um homem que lá terá o seu valor.