30 outubro 2019

Em verdade te digo, Ruben Patrick


O problema, Ruben Patrick, é que ela reterá implacavelmente cada palavra que profiras, bem podes mais tarde alegar que não te recordas, aplicar as melhores técnicas de manobras de diversão, informar que as palavras, depois do quinto gin, têm geometria variável, bem podes invocar os amigos com memórias mais esclarecidas, todos te vão falhar, os humores de uma mulher que não se esquece de palavras são território que ninguém quererá invadir, se, por desventura, te cruzares com uma dessas mulheres de memórias de longo prazo, mais vale fazer de conta que tens presentes as palavras que, no ardor do momento, proferiste, afinal elas ficaram escritas na pedra e não será essa tua quase certeza de que ela as retorceu, manipulou e cuidou que aderissem ao que ela quer que as tuas palavras digam, que te dará qualquer tipo de absolvição.

28 outubro 2019

Encomenda


Quando se é o infeliz possuidor de uma mente ortonormada, onde todos os acontecimentos são arrumados numa referência vectorial, quase sempre espaço-tempo, dá-se o caso de nos inquietarmos quando não conseguimos relacionar um determinado acontecimento, aconteceu-me não conseguir alinhar a gargalhada compulsiva de Joker, com outro espaço e outro tempo em que já tinha visto coisa igual, dei por mim a quase desistir de me lembrar em que outras circunstâncias vi um riso igual ao de Joker, quase três semanas depois a resposta chegou-me a meio de um almoço com pessoas dessas que me fazem descansar o cérebro num ponto de fuga, o Joker tem um riso igual ao do tipo que cantava músicas italianas no Hotel des Bains, em Morte em Veneza, de Visconti, e eu posso, enfim, voltar a acreditar que tudo está no seu lugar.

Escusais de vos deslocar a esses sítios onde se pode visualizar o Woody Allen deste ano

Pelo mesmo preço que custa um bilhete para a sessão da noite de “Um dia de chuva em Nova Iorque”, podemos comprar uma garrafa de Quinta do Gradil Chardonnay branco, um vinho honesto com notas florais, é fácil, todos os brancos têm notas florais, seja no início ou no final de boca, pelos mesmos sete euros, pode-se adquirir um Júlio Verne e meio num alfarrabista honesto ou dez cafés numa esplanada razoável em Lisboa, tudo isto sem nos aborrecermos com a sensação de dinheiro atirado ao lixo, tudo isto sem aquele travozinho a déjà vu que toma conta de nós a cada filme de Woody Allen, esse espertalhaço que conta com aqueles que compram o Expresso ao sábado, que pedem sempre uma francesinha no Capa Negra ou que não perdem nenhum livro novo de Philip Roth, enfim, Woody Allen conta com os homens de hábitos, que não perdem um novo Tarantino, um novo Bond, James Bond ou um novo  Woody Allen e intruja-nos sem piedade, contando-nos sempre a mesma história, bem sei, eu faço o mesmo, mas pelo menos eu não peço sete euros por cada post novo.

21 outubro 2019

The Lello experience

Talvez o estimado turista mereça a maldade de o tratarem como imbecil, tudo vale a pena quando, por fim,  o estimado turista se fotografa nas escadarias de madeira, carinhas felizes, afinal o Harry Potter deslizou naqueles corrimãos, precisamente ali onde o estimado turista publica o seu retrato, que importam os asiáticos fazendo marcação corpo a corpo?, time is running out e o tuc-tuc está à espera, a emoção de finalmente entrar na Lello & Irmão, depois da procissão da compra do bilhete de entrada, aliás, o voucheur, que será trocado mais tarde por um Paulo Coelho encarecido nos tais cinco euros, o estimado turista paga o que tiver que pagar, um dia não são dias, aquilo é praticamente Hogwarts, caramba, vale bem a pena, até eu, que sou eu, lá comprei um Jo Nesbo, não tirei foi os retratos, a minha preocupação era sair dali, que para sofrimento já me bastaram os filetes de polvo da Casa Aleixo.

20 outubro 2019

O problema sou eu

Ela era uma dessas mulheres que aprecia Peixoto, que se emociona com os quatro minutos e trinta e três segundos de Cage, que disserta sobre o Azul de Klein, que reivindica achar "O Couraçado Potemkine" um filme demasiado comercial.

(e assim se transforma um jantar com potencial numa conversa demasiado curta, um destes dias, no Bistrot du Nord, ali para os lados de Antuérpia)

09 outubro 2019

Joker

Joker, o filme, não aquela coisa em que o apresentador calça meias de padrões alternativos, não me fascinou por aí além, joga às escondidas com as nossas emoções, isso é certo, mas falta-lhe aquele je ne sais quoi que nos perturbe mesmo a valer, que abane mesmo as nossas certezas sobre as coisas serem como são.

(mas eu, que acompanhava Batman nas vinhetas a preto e branco de um jornal que já não existe, pensava que Joker tinha tido uma vida menos sofrida, por isso me aborreci tanto com a revelação)

02 outubro 2019

De como o furacão Lorenzo me proporcionou um dia inesperadamente sem agenda

Eu, que sempre me vi em dificuldades para distinguir os Men at Work dos Fischer Z, Dan Brown de Ken Follett, as últimas palavras de Cristo segundo Mateus e segundo Lucas, Di Caprio de Brad Pitt, a marcha nupcial de Mendelssohn e a de Wagner, sei distinguir perfeitamente uma Hoegaarden de uma Mort Subite.

01 outubro 2019

De volta a casa


Serei sempre feliz a subir montanhas, enregelado e respirando como posso, descendo montanhas com Strauss nos ouvidos e sentindo o vento na cara, mergulhando nos mares, deslumbrando-me com a tridimensionalidade dos meus movimentos, esgueirando-me por grutas e algares, aproveitando o silêncio e o rumor das asas dos morcegos, falando com pessoas que sabem de plantas que curam e de chás que tudo podem, mas, caramba, Londres é Londres…