26 abril 2016

Gaveta dos retratos da casa dos meus pais

E este sou eu de calções a abraçar o meu irmão, aquele era o tempo em que eu ainda era mais alto que o meu irmão, e este sou eu de gorro a correr atrás das pombas no Rossio, a minha mãe ficou no canto da fotografia a rir, este sou eu deitado numa rocha alta, a mão que quase não se vê é do meu pai, não fosse dar-se o caso de eu cair, este sou eu a jogar à bola na final de um campeonato, perdemos por um-zero porque a bola me bateu na mão e foi penalty, este sou a fumar charuto num fim de ano muito frio, aqueles olhos era porque já tinha nascido a manhã e tínhamos estado a comer chouriço assado e a beber Macieira durante toda a noite, este sou eu a aquecer as mãos numa fogueira em Arganil, dali a nada havia de passar o Hannu Mikkola, este sou eu a caminhar na ilha das Flores e na de Santo Antão, no Gerês e no Monte Branco, este sou eu de fato e gravata, dez amigos abraçados no casamento de um deles, alguns já não são meus amigos e outros já cá não estão, este sou eu na praia com o meu polo cor-de-rosa, é sempre bom saber que já tive um polo cor-de-rosa, este sou eu a jogar poker numa véspera de exame de Complementos de Matemática II e mesmo assim tive treze, este sou eu abraçado ao meu primeiro cão, que era uma cadela grande e preta e estava com muitas feridas e muita fome no primeiro dia que nos vimos, este sou eu com pés de gato e cordas à cintura a escalar uma parede fácil no Montejunto, este sou eu a segurar a minha sobrinha e ela tem uns binóculos e ainda nos lembramos os dois do que vimos nesse dia, este sou eu de barba de quinze dias e t-shirt branca a ler Pamuk.

11 comentários:

  1. Há uns dias encontrei dentro de um livro na estante da casa dos meus pais uma fotografia minha na ilha de Santo Antão muito próximo do Topo da Coroa a beber grogue e a fumar "falcão". Há-de datar ai de Junho de 1990. Inicialmente interroguei-me o que estaria eu ali a fazer, mas depois olhei o céu azul tão perto das nossas cabeças e lembrei-me.
    Era para trazer a foto para minha gaveta, mas achei melhor não. Ali é o lugar dela.

    ( este post não faz parte do tal post que é sempre o mesmo, pois não?)

    Um abraço

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    1. É uma belíssima perspectiva, essa de as fotos pertencerem a gavetas que não são as nossas.

      (é obviamente o mesmo post de sempre, repare o meu caro que estão lá os ingredientes todos, a nostalgia, a remissão para a intimidade do blogger, o mundo de aventuras subliminar - esqueci-me apenas de invocar uma foto a cozinhar uma iguaria requintada...)

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    2. Deixa lá isso, meu caro. Ninguém vai dar conta da clamorosa falha. Ficou tudo retido, ali, naquilo do polo cor-de-rosa.

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    3. O polo cor-de-rosa não está ali a meio do texto por acaso, o polo cor-de-rosa é a papoila num campo verde, é o elemento que dá ânimo à leitora para prosseguir a leitura, é o que corte com a ordem natural das coisas (ainda estive para optar por um disco de vinil do George Michael mas achei que resultaria pior...)

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    4. :)))
      Aposto que se fartou de dançar ao som de Careless Whisper...mas disso não existe registo fotográfico.

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  2. Cláudia Filipa26.4.16

    Abrir uma "gaveta de retratos" e tirar de lá um resumo da nossa vida selecionado por outras pessoas, momentos que ficaram congelados e que desencadeiam uma série de memórias muitas vezes com uns " Nem sabia que havia uma fotografia disto. Olha eu aqui!. Ah! Que vergonha, mas guardaram isto para quê?" a acompanhar. Abomino bisbilhotices com essa exceção, adoro que as pessoas me mostrem essas reportagens fotográficas da vida delas e, já se sabe, quando a reportagem foi feita pelos pais aquilo está carregado de amor.

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  3. Isso do polo cor de rosa é o elemento ficcional, não é?

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    1. Obviamente.

      (na verdade era uma camisola de alças preta a dizer "Portuguese do it better...)

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  4. Anónimo26.4.16

    Desculpe, tio, espero não o ofender. Mas esse já não é você. Um dia foi assim, mas já não é. Mas ter as fotografias impressas, palpáveis, de um dia em que a amizade por alguém ficou assim imortalizada é sem dúvida um pilar de estima e um elo de memória muito mais forte do que estas fotos que raramente saem de um ecrã.

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  5. Era mais bonito quando bebia Macieira, agora que bebe gin, tem o seu charme mas, antes era um moço bonito

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  6. Anónimo24.7.16

    Gostei TANTO deste post! Conseguiste explicitar todas as memórias e até mesmo os mais ínfimos detalhes das fotos através das palavras. E costuma-se dizer que uma imagem vale mais que mil palavras portanto, parabéns pela proeza! ;)

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