20 agosto 2013

Fosse J. Rentes de Carvalho apenas um cavalheiro...

...e, diplomático, agradeceria,  breve e gentil, aos que por aqui passaram, certamente não lhe faltariam adjectivos diversos para responder a quem aqui deixou testemunho.

Acontece que J. Rentes de Carvalho não é apenas um cavalheiro, é um homem generoso. E envia-nos uma velha história de melancolia (as palavras são do autor) como forma de agradecimento a todos os que aqui passaram por estes dias.

A mim, mais não resta que respirar fundo e passar rapidamente ao que interessa. Minhas senhoras e meus senhores, regalemo-nos então.



UMA TARDE NA FOZ


 Chama-se-lhe paixão, mas aos quinze anos não pode ser. Não é. Antes uma espécie de estado febril, tontura das hormonas, pois fora um ou outro poeta ninguém em seu juízo se apaixona por um retrato. Ele tinha-se apaixonado. E nem era retrato, mas a gravura dum anúncio, uma rapariga no alto de um escadote, segurando numa mão uma lata de tinta, na outra um pincel. 
- Burrice! – troçaram os amigos. – Uma gaja num escadote? Olha-se pra cima e que se vê? Uma lata? 
Ténis brancos, jeans, blusa quadriculada de azul e creme, um belo rosto a resplandecer alegria, olhos azuis, cabelos de ouro. Começara pelo fascínio, mas não tardou a sentir-se embruxado. Colada na parede, a página dava a ilusão de que se encaravam. Falava-lhe. Um dia arriscou o primeiro beijo. Depois, longas conversas sussurradas, diálogos em voz alta, suspiros, a mãe no corredor a perguntar o que era, se queria alguma coisa. Não tem ideia do que aconteceu à gravura, de como ou quando aquilo terminou. Muitos anos, muitas vidas depois, muitas águas passadas, Ilse iria dizer-lhe que em alemão havia uma palavra bonita para esse sentimento, Jugendliebe. Estivera tentado a lembrar-lhe que havia uma expressão semelhante em inglês, por certo também noutras línguas, mas Ilse não era para lições e, fora a cama e a música, enfim... Águas passadas. Ilse! A Ilse de Munique! A juventude são instantes, não são? 

Está numa esplanada na Foz, encarando o mar. Fim de tarde, domingo sereno. Alheado do burburinho, interrogando-se de que fundos terá vindo a recordação. Com esforço, sim, talvez conseguisse lembrar as feições de Ilse, as doutras amantes, as das mulheres com quem tinha casado, mas a rapariga no escadote surgira-lhe ali sem razão que adivinhasse, misteriosamente fiel nos detalhes, nas cores, a gravura nítida como que projectada num ecrã. 
Burrice, de facto. Sorriu à memória dos amigos e das ocasiões perdidas, melancólico com o sentimento de que a certo ponto da vida tudo parece estagnar. 
Passou as mãos pelo rosto e esfregou os olhos, ao mesmo tempo que sacudia ligeiramente a cabeça, exorcismo dos pensamentos que não queria ter. 

A mulher deteve-se e encarou-o brevemente, dando ideia de julgar reconhecê-lo. Viu-a depois hesitar na escolha, olhando em redor como se procurasse alguém, para finalmente, escolher a mesa fronteira. 
Bela mulher. Modo desenvolto. Ano mais, ano menos, a idade indefinida entre os trinta e cinco e os quarenta. Cabelo preto, a fazer moldura a um rosto sereno, descendo sobre os ombros, decote elegante, um colar assimétrico de grandes bolas negras. Vestido longo, lilás escuro, o ar de quem dali a pouco iria a uma festa. Olhos expressivos. 
Em tudo tão outra, e mesmo assim a sua imagem parecia sobrepor-se à da recordação de adolescente, como se entre ambas se fizesse uma simetria. Seria a forma do rosto? A vivacidade do olhar? O indefinido que marca certas pessoas? A estranheza que nos toma inseguros cada vez que a realidade parece diluir-se? 

À rapariga da gravura chamara Esther, inconscientemente. Talvez porque nesse tempo Esther Williams era a sua actriz favorita. Mas Esther não serviria para a bela estranha. Ali, junto do mar, antes o clássico Maria, a tradução latina da Vénus grega. 
E por que não Marina, que lhe recordaria Moscovo, onde fora feliz? Mariana? Marisa?... 

Distraído a fabular, só deu conta do homem quando ele já se curvava a beijá-la na face. 
Bem proporcionado. Atlético. Não lhe via o rosto, mas tudo nele dizia juventude. Filho? Amante? Ela levantou-se e ele – carinho? paixão? – passou-lhe o braço pela cintura. 
Ao vê-los afastar-se desvaneceu-se a memória antiga, como se naquele instante a gravura finalmente se despegasse da parede onde, adolescente, a tinha colado.

15 comentários:

  1. Não me surpreende que JRC tenha composto este conto, esta fabulosa memória especialmente para o Senhor. É lindo, imaculadamente escrito e tem tudo a ver com o imaginário criado por nosso Senhor. JRC é um escritor admirável e um ser humano espantoso. Sinto-me honrada por ter lido de ambos e feliz por saber que há futuro pala além do finale. Obrigada.

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  2. Obrigada JRC e Dom Pipoco por partilharem connosco este momento!

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  3. Anónimo20.8.13

    Incrível, este momento. Pipoco, quase passei a gostar bocadinho de si.

    Rita Duarte

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  4. Anónimo20.8.13

    Muito, muito bom. O conto certo para este blog. Vénia ao Prof. Rentes de Carvalho

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  5. Anónimo20.8.13

    -Distraído a fabular-
    É assim que imagino o JRC. A seguir, com mãos de mágico, a juntar numa finíssima rede as emoções, a levá-las para casa, a dar-lhes corpo, para poderem vir para a rua alegrar-nos a alma e os sentidos.

    LENOR

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  6. Sheila Carina20.8.13

    Gostei muito, muito mesmo. Fiquei comovida pelo que adivinho uma bonita e muito preenchida história de vida.
    Obrigada por nos mostrar.
    beijinho.

    Sheila Carina.

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  7. OCorvo20.8.13

    Quedo-me rendido à perfeição descritiva e à sublime beleza das palavras.
    Obriga o respeito e a honestidade que me fique mesmo por aqui, reconhecendo em mim a ridícula veleidade do ignorante julgar o mestre. Aprecio deleitado e aprendo, apenas.
    Os meus respeitosos cumprimentos.

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  8. desconfio que mesmo que J.Rentes de Carvalho se afaste dos mais recentes duelos, nunca a nossa memória se irá desvanecer...
    ficará a sua gravura sempre postada na parede onde se colam os bons escritores e os bons homens.

    ao senhor dom pipoco quero agradecer a generosidade e hospitalidade com que sempre agraciou os seus convidados. será teu também o espaço dos bons escritores.

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  9. O carteira Vazia - eu sei que talvez este local não seja o mais próprio para divulgar uma página, mas não custa nada dar uma olhada rápida pelo meu blog. penso que toda a todos, a crise...

    http://ocarteiravazia.blogspot.pt/

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  10. Anónimo21.8.13

    Molhe. Metáfora. Maravilhoso.

    Maria Helena

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  11. Ele há coisas fantásticas, não há? Muito, muito grata. AnaDD

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  12. Caro Pipoco
    Por favor, tome nota que me sinto completamente imbecil a escrever “ Caro Pipoco”. Enfim, não é apenas a fazer isso, mas hoje sinto-me particularmente disponível para o ser assim.
    Mas vamos ao meu assunto.
    Ao ler o texto de J. Rentes de Carvalho lembrei-me de lhe dar notícia (ao JRC) de uma das minhas anedotas, em fé de que lhe acharia graça. Sucede que não sei como.
    Como aqui vem andando em troca epistolar lembrei-me que se podia dar o caso de me servir de carteiro.
    Bem sei que isto não é coisa que se empenhe a alguém que não põe açúcar no café. Mas como também ponho algum afeto no que por aqui rabisca, arrisco-me a antecipar-lhe gratidão.
    _________________________________________
    Segue o texto que entrego à sua diligência:


    A propósito de “Uma Tarde na Foz”, se a curiosidade lho consentir, veja um comentário que um dia me dei à desgraça de fazer aqui: https://www.facebook.com/media/set/?set=a.278355078913048.66445.128222747259616&type=1
    Contive-me nos detalhes da minha historieta; se o não tivesse feito, achá-la-ia ainda mais extraordinária.
    Afinal de contas, para meu espanto, a coisa até tem nome. Aprendi-o consigo.
    Saudações de mais alguém que sente uma grande afeição pelo seu trabalho.
    carlos gonçalves

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  13. Caro Carlos Gonçalves,
    Passei e li. Pelo que sei Dom Pipoco está de férias e eu não tenho Facebook (uma vez abri conta por curiosidade e, ditatorialmente, não me deixam sair). Corresponda para aqui, sff: jrentes@xs4all.nl
    Cordialmente,
    JRC

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  14. Caro Carlos Gonçalves,
    Passei e li. Pelo que sei Dom Pipoco está de férias e eu não tenho Facebook (uma vez abri conta por curiosidade e, ditatorialmente, não me deixam sair). Corresponda para aqui, sff: jrentes@xs4all.nl
    Cordialmente,
    JRC

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