24 janeiro 2016

A minha primeira vez nas urgências de um hospital público

Cá estou. Meio debilitado, mas isto são achaques da idade. E com este tempo já se sabe, a humidade é fatal para as articulações de um ancião. Pomada Tigre e Emplastro Leão e a coisa resolve-se.

Fui parar a um hospital público porque era o único até onde eu conseguia conduzir. Era o mais próximo, a escolha foi simples. Às oito da noite lá estava eu, a dizer onde morava e a acrescentar que só queria que me dessem alguma coisa para as dores. Não me deram nada para as dores mas deram-me a senha D1313, que eu devia ter rejeitado, aquele era o número do Primo Azarado dos Metralhas.

Quando o número 1313 apareceu no écran eu achei que afinal as urgências não são assim tão ruins, afinal ainda não tinha passado meia hora e já me chamavam, certamente a senhora da recepção tinha percebido a gravidade do meu caso. Afinal não, aquilo chamava-se triagem e era só uma rapariga com muito bom ar a decidir que eu merecia uma pulseira amarela, explicou-me que agora era ir para a sala de espera e esperar. Pareceu-me coerente.

A sala de espera é um sítio divertido para quem quiser fazer análise sociológica da espécie. Senhoras idosas de pijama e roupão, rapazes gordos em fato de treino, seguranças que comunicam por intercomunicador e acabam sempre a dizer "Recebido" ou "Escuto", velhotes que se levantam da cadeira e coçam o escroto, rapazes que respondem muito alto a chamadas telefónicas e dizem "não sei, caralho, estamos aqui há quatro horas, caralho". E eu, o tipo que está em pé porque não se consegue sentar.

Quando o número da senha aparece no écran, a pessoa transforma-se. Esquece os impropérios e a ira esmorece. O momento faz-me lembrar o dos miúdos que são seleccionados para a fase seguinte no Ídolos, a pessoa que tem na mão a senha com o mesmo número que aparece no écran voa sobre os demais, pula de alegria e a sala, com as velhinhas de pijama e os tipos que coçam o escroto, quase irrompe num aplauso, feliz pela sorte do tipo com a senha com o número do écran, suspirando pelo momento em que poderão ser eles a viver aquele momento mágico, de libertação.

A consulta dura vinte segundos. O médico, um guineense que se ria muito e com mais dificuldades com o Português que o treinador do meu clube, toca onde eu digo que tenho dores, eu digo "Ai!", ele responde "Já precebi, já precebi...", encomenda um RX, eu peço alguma coisa para as dores, é uma da manhã, ele diz "estou escrevendo, estou escrevendo", e lá estou eu na sala de espera de novo.

Chamam-me para o RX, eu volto a pedir alguma coisa para as dores, e um tipo com ar de puto e um barrete de lã simpatiza comigo porque me viu segurar a porta a um velhote com algália e "o cabrão do velho nem te agradeceu, man...". Digo-lhe que ele nem notou, já lhe deve faltar a paciência, o miúdo afinal chama-se Ruben e tem três filhos, Resisto a dizer-lhe que tenho um sobrinho com o mesmo nome, não estou para grandes conversas.

São duas da manhã e levo então a minha dose de injectável, dois frascos, um de líquido branco, outro de líquido amarelo, a meio peço para me deixarem deitar na maca, o enfermeiro diz "sim, de facto está a ficar branco", mas descansa-me a virilidade, "isso é do medicamento, isso é dose para cavalo", quando acaba o segundo frasco o enfermeiro não está, informam-me que tem duas salas para tomar conta e está na sala errada nesse momento, infelizmente o sangue, o meu sangue, está a começar a ocupar o lugar onde antes estava o líquido amarelo e aquilo começa a aborrecer-me, até porque são duas e meia da manhã e eu já não tenho dores, o sacana do medicamento resulta, vou à procura do enfermeiro, agulha espetada num braço, suporte metálico na outra, encontro-o  a meio caminho, o enfermeiro pede desculpa, tem duas salas onde tem que estar, eu compreendo, cada vez compreendo melhor, tira-me tudo mesmo a agulha, o médico pode achar melhor eu levar mais líquido injectável e assim já tenho a agulha espetada, negociamos, pergunto-lhe qual a probabilidade disso acontecer, ele diz que não é muita, digo-lhe para me tirar a agulha, se for preciso pica-me no outro braço, concorda comigo, saio dali, sigo para o médico, diz-me que tenho que ter cuidados com certas e determinadas situações, digo que sim, que terei.

São três da manhã e esperei sete horas por uma injecção para as dores. Sete horas. Um dia de trabalho de um funcionário público...

15 comentários:

  1. Eish, que exagero! As sete horas não foram todas para levar a injeção. Esteve sete horas no urgência, agora pela injeção terá esperado umas três (continua a ser muito tempo, o protocolo deanchester fala em 50-60 minutos de tempo ideal de espera), as outras foram para observação...
    Sólida recuperação, Pipoco.

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  2. Conto o tempo a partir do momento em que cheguei e disse o que precisava até me terem dado a coisa simples que pedi. Sete horas.

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    1. Ai Pipoco, sete horas até à injeção propriamente dita?! Ninguém merece, caramba. Então quantas horas esteve nas urgências? Às tantas justificava-se mesmo a excursão que a Palmy organizou, que a comida das máquinas de venda automática (se é que a pequena dos coissants não limpou as máquinas todas) é uma miséria, só açúcar e gordura. Bom, pelo menos os utentes não entram em hipoglicemia, e se tiverem um enfarte já estão no hospital.

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    2. Pipocante Irrelevante Delirante24.1.16

      O problema é esse.
      Os médicos não gostam de quem lá vai com a mania de quem sabe. Ficasse Caladinho e chamasse pelo senhor doutor, receberia a dose mais cedo.
      Ve-se mesmo que não é utente...

      (E enfermeiras jeitosas, como era?)

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  3. Anónimo24.1.16

    ainda bem que "pediu", presumo que seja medico para saber prescrever. uma emergencia nao eh igual a urgencia. hospitais sao para emergencias, as urgencias eh noutro local (que provavelmente nao esta aberto e disponivel a desoras porque nao ha dinheiro para tal).
    resumindo...se teve forcas para cehgar ao hospital e "pedir"...meta-se num taxi e vao onde possa "pedir" e ser atendido, sera melhor servido. de nada.

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  4. Cláudia Filipa24.1.16

    Volto mais tarde para ler o texto em condições e prometo-lhe que não lhe digo qual o motivo pelo qual faço questão de, em caso de necessidade minha ou como acompanhante ir a um hospital público, mesmo que demore mais tempo, lá íamos parar àquilo do público vs privado. Mas nada disso interessa agora, o que me interessa é que não tenha sido nada de grave o que se passou consigo, e que efetivamente tenha "cuidados com certas e determinadas situações", é que, sabe, quer queira quer não, é uma das minhas pessoas dos blogs, uma expressão da Maria Eu, e eu gostei tanto que passei a usar também. E como é uma das minhas pessoas dos blogs, eu desejo que esteja sempre o melhor possível, é isto que desejamos para as nossas pessoas, sejam lá elas de onde forem.
    Rápidas melhoras, para si, claro, se me permite, deixo agora para segundo plano o tal de Pipoco.

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  5. Anónimo24.1.16

    Ahahahahahah, desculpa lá, mas és um ganda nabo! Para a próxima, atira-te para o chão, esperneia, grita aos sete ventos que tens dores. É um instante. Agora, se vai para lá a conduzir, ficas caladinho a um canto e dizes ao médico o que deve fazer... Mais pareces um agarradinho que quer uma dose à borla e que inventa uma desculpa esfarrapada.
    (Se já sabias o que era, chamasses um táxi e fosses ao privado. Para que queres o dinheiro?? É só para charutos, gins e futebóis?)
    Se lideras a tua equipa da forma como "lideraste" a tua ida ao hospital, socorro! :P

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  6. Eu disse-lhe para ir embora e tomar um clonix! As pessoas insistem em não fazer o que lhes digo...

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  7. Teve sorte! Se tivesse tido uma rotura de um aneurisma na aorta abdominal ao sábado, já cá não estava para contar a história da sua ida às urgências de um hospital público. Mesmo assim, se algum dia se sentir muito, muito doente, vá a um hospital público! Diz-lhe quem sabe, trabalhei num 40 anos.

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  8. Ri alto aqui com as descrições :) as melhoras. e obrigada

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  9. A vida do povo é difícil não?
    Fique bem depressa :)

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  10. Agora é só imprimir o tópico do blog e "tauu" livro de reclamações 😛

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  11. A sua narrativa, caro Pipoco, se bem que dirigida aos hospitais públicos, está longe de os descrever apenas a eles.
    Há mais de dez anos, tive a primeira crise renal. Não sabia o que era, pensei que estava a morrer. Fui ao hospital mais perto, o da Cruz Vermelha, e, em pouco tempo, depois de umas análises e uma eco, puseram-me a dormir. Acordei ótima, com indicações para ir a um especialista. No dia a seguir, à mesma hora, pimba!, outra crise. Voltei ao mesmo hospital, viram a minha ficha, puseram-me outra vez a dormir. Fiz exames, depois, não acusaram nada.
    Dez anos depois, noutra cidade, outra crise renal. Fui ao Hospital Privado, disse o que estava a ter, expliquei que era a terceira crise renal em dez anos, que estava cheia de dores e que estas não passavam com buscopan, e o médico deve ter pensado que eu era uma heroinómana e pôs-me a benuron, numa maca, perto do gabinete dele, para avaliar a minha situação entre consultas, das 8 da manhá às 4 da tarde. Nessa altura, como eu já rebolava (literalmente) pelo chão, o meu marido entrou pelo gabinete do médico, a meio de uma consulta e, até hoje ignoro o que lhe disse, mas sei que finalmente me tiraram as dores e me puseram a dormir.
    Por isso, não sei não, se o privado é melhor do que o público. Acho que tem dias...

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  12. Anónimo24.1.16

    Que odisseia Pipoco!!
    Espero que as dores tenham passado e agora... é esperar que não voltem e, talvez, consultar um médico para garantir que não tem outra noitada destas.

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  13. Eu tinha sugerido que se tratava de uma cólica renal. Confirmou-se?

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