06 março 2015

O moço de fora e a criadita de dentro

Quem realmente mandava na casa era o Senhor Constantino, o velho mordomo, com uma amplitude de saberes que se estendia desde o domínio da dose certa de gin que satisfazia o Tio Aldemiro até à análise cirúrgica das jovens donzelas que me visitavam a propósito de saber do meu estado geral, "tenho o menino Pipoquinho muita atenção a esta, que não quer outra coisa senão o seu corpo", "saiba o menino Pipoquinho que o aguarda na sala de visitas a menina Isaltina, filha do Doutor Gonzalez de Noronha, gente de bem", e lá estava eu, avisado dos perigos ou da segurança que me esperavam na sala de visitas, onde dois grandes jarrões de louça bizantina sustinham begónias colhidas no inverno, onde a cara dos velhos e façanhudos antepassados davam as boas-vindas a quem esperava. O Senhor Constantino, tinha começado por ser o Constantino, o moço de fora, que nos engraxava as botas de montar e trazia os telegramas ao meu avô Benevides, que o tinha acolhido quase como seu filho, o pequeno Constantino ali no meio dos silvedos, mal aconchegado num caixa de madeira, dessas de laranjas colhidas ao amanhecer, ainda orvalhadas, o meu avô Benevides a sair para a caça da lampreia e, comovido, encheu-se-lhe o coração de compaixão e logo ali ordenou ao fiel Sebastião, que levasse o rapaz para a quentura da vacaria que ele, terminada a caçada, logo havia de decidir que se destino se daria ao rapaz. Dois dias mais tarde, havia de se voltar a lembrar do rapazito e, desde esse dia, haviam de ser inseparáveis, isto, é claro, cada um sabendo da sua posição, o avô Benevides sentado no seu cadeirão de couro curtido na estepe amazónica, o Constantino ocupando o caramanchão do jardim, crescendo em graça e idade, a ponto de um dia, não sei antes obter a necessária aprovação do meu avô Benevides, acabar por se perder de amores pela Zunolinda, a criadita de dentro, que um dia terá aqui a sua história, assim me continue a divertir recordar-me destes tempos tão sãos, tempos de respeito e em que cada um sabia a importância de as coisas realmente serem como são.

16 comentários:

  1. Anónimo6.3.15

    Caça à lampreia... :)

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  2. Anónimo6.3.15

    Metusalah, és tu?

    E o Pipoco, que idade tem, 120 anos? Pois se o Constantino, ainda como moço de fora lhe engraxava as botas de montar e entretanto, já mordomo, Senhor Constantino, o avisava dos intentos das jovens donzelas que de si queriam saber?

    Senhor Constantino? O Constantino que começou como moço de fora e chegou a mordomo? Senhor Constantino? Não me convence, nem o Constantino o permitiria. Uma vez Constantino, sempre Constantino, com toda a dignidade, alguma altivez até, ainda que disfarçada, mas só Constantino, que no tempo em que cada um sabia a importância de as coisas serem como são era assim que eram.

    É uma pena que não me convença, porque lhe reconheço habilidade para juntar as palavras em torno de nomes exdrúxulos.

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  3. Anónimo6.3.15

    Boa tentativa Pipoco mas o texto da Palmier é bastante melhor.

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    1. Anónimo6.3.15

      Porque a Palmier conheceu a Lúcia e o Pipoco não conheceu o Constantino. Há dúvidas?

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  4. E eu a pensar que este era um blog snob-chic... afinal, vai-se a ler nas entrelinhas e verifica-se que se trata, nada mais nada menos, que um blog de esquerda revolucionária! :)

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    1. Anónimo6.3.15

      Nah Palmier, um blog só snob! Da direita mais reaccionária!

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  5. Cláudia6.3.15

    Sempre me disseram que a vingança é um prato que se serve frio. Mas, como isto são blogues, sem o só, porque não gosto do só, esta é, posso chamar uma malandrice? pronto, já está, então, esta é uma malandrice servida a frio e todos sabemos que existem pratos frios, tão bons como os pratos quentes, o que conta é a qualidade de quem confecciona e perante a qualidade de quem confecciona, quem fica a ganhar somos nós, os degustadores. Aguardo pois, pelas aventuras e desventuras de Zunolinda, a criadita de dentro.

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    1. Engana-se, Cláudia. Isto nada tem a ver com vinganças, tem a ver com brincar com uma das bloggers mais interessantes e estimulantes que por cá temos.

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    2. Cláudia7.3.15

      Também estava só a brincar, mesmo e convencida que tinha tido muita graça...na volta, ralharam comigo.

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  6. Ai, que saudades da estepe amazónica! In illo tempore...

    A servidão pode ser a mais completa forma de liberdade, não é? Levada a extremos, pode fornecer ao mundo grandes obras de arte. Histoire d'O será sempre um livro magnífico, por exemplo.

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  7. Anónimo6.3.15

    Até que enfim me volto a animar com um post seu ! Fantástico. Voltou aos bons tempos...aos tempos daqui deste espaço. Gostei muito do enquadramento certo dos jarrões de louça bizantina. Que ícones.

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  8. Vou aqui tentar outra abordagem a ver se desarmo Pipoco, coisa que se tem demonstrado bicuda.
    "Constantino ali no meio dos silvedos, mal aconchegado num caixa de madeira, dessas de laranjas colhidas ao amanhecer, ainda orvalhadas...´'
    No tempo do Constantino não havia caixas de madeira para guardar laranjas nem as laranjas se dão nos silvados.
    Entretanto para o menino estar dentro de uma 'caixa' no meio do silvado havia de estar um tempo quente, caso contrário morria o menino na geada, e nesse caso, estando calor, colhia-se a laranja Valencia Late ou D. João, coisa que se faz de maio a setembro. Ora nestes meses e de manhã, orvalho é coisa rara.
    Couro curtido na estepe amazónica (Caatinga e Campanha Gaúcha) no árido sertão nordestino, deve ter custado uma nota preta ao avô, mas gostei, porque pouca gente tem noção que existe uma estepe amazónica onde se curtem belas peles para fazer sofás...
    Hum? Isto foi alguma coisa que preste?

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  9. Yeiiii, um post "baralha, parte e dá", os meus preferidos.

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