12 agosto 2013

Meu caro J. Rentes de Carvalho...

... não sei por que feliz alinhamento de astros tenho o privilégio de estar aqui à conversa com tão notável cavalheiro mas a verdade é que me habituei a que as minhas recordações mais felizes surjam assim, de acasos estatisticamente improváveis.

Noto, com agrado, que o meu caro é um optimista dos graúdos, já que cuida que o território onde se movimenta o alfacinha é de tal maneira grandioso que se espraia pela tão grande lonjura que vai de Loures (onde diabo será Loures, caramba?...) até ao Terreiro do Paço. Seria o mundo um lugar melhor se assim fosse, meu caro J. Rentes de Carvalho, mas a verdade é que encontrar um alfacinha para esses lados, tão além da sua zona de conforto, como se diz agora, é tão provável quanto encontrar um trasmontano além de Quintanilha.

O que é notável no alfacinha, meu caro J. Rentes de Carvalho, é que, com epicentro no Terreiro do Paço, sendo que falamos do epicentro de uma meia cirunferência, a religião do alfacinha não permite que se considere o que está para além do rio como seu territrório natural, não se movendo para Oeste senão para jogar um par de horas na roleta do Casino do Estoril ou almoçar um recomendado robalo no Porto de Santa Maria, tudo o resto desenvolvendo-se até às Avenidas Novas, com o Estádio de Alvalade como limite a norte, e até Santa Apolónia, para apanhar parte de Alfama que interessa, o que é notável, dizia eu, é que, apesar deste espartilho geográfico, anos e anos de transmissão de saberes resultaram num aprimoramento de qualidades tal que permitem que o alfacinha, não dominando mais que dois saberes, três, nos casos de alfacinhas mais dotados, quatro no caso deste que lhe escreve, transmitindo-se os saberes fundamentais por osmose, de pai para filho, convida aqueles que com os alfacinhas se confrontam a assumir de imediato uma posição respeitosa, conveniente, que permite em última análise ao alfacinha, parco de recursos, assumir o comando e liderar por improvável aclamação.

Veja a escolha do vinho, meu caro. De um lado um trasmontano pleno de saberes, um homem que sabe construir uma casa com as próprias mãos, que domina as malas-artes de um bom jogo de sueca, que diferencia se hesitar uma macieira de uma oliveira, que sabe assar um porco inteiro ou em que mês se semeiam as batatas. Do outro, o alfacinha, que não sabe senão conjugar o vinho certo com rosbife au meunier. O trasmontano tenderá a escolher um Dão encorpado, uma mistura de casta malvasia e aragonês. O alfacinha, diplomaticamente, tenderá a sugerir um Romanée-Conti, entusiasticamante aprovado pelo escanção do restaurante, escavacando assim o ego do trasmontano. Daí em diante, bem poderão falar de astronomia ou de matemáticas aplicadas, de arte bizantina ou do modo como operavam os sarracenos, que vingará sempre a visão do alfacinha, de tal forma o trasmontano está ainda perturbado com a sua desajustada escolha inicial.

Seja como for, meu caro J. Rentes de Carvalho, e certo que me perdoará a ousadia, o que eu gostava mesmo de saber é o que ainda o pica (para usar uma sua expressão que nós, alfacinhas de certa classe, não usamos). O que pica um homem com mundo, um homem que já viveu tantas vidas, um homem que fez tantas coisas e tão diferentes que alguns de nós, mesmo os alfacinhas de certa classe, não desdenharíamos fazer igual?

(e, à laia de segunda pergunta com subliminar encadeamaneto na primeira, muito gostaria eu de saber como lida o meu caro com a tribo da faixa do meio, se por essas lonjuras que calcorreia também há disso, dos da faixa do meio, e, não sendo muita maçada, se a sua preferência por faixas de autoestrada sofreu alterações ao longo dos tempos, se a maturidade o levou a escolher faixas preferenciais que não imaginava possíveis nos tempos de maiores efusividades próprias da juventude, se a música que o meu caro escuta no carro o impele para uma ou outra faixa).

Se o meu caro me julgar inconveniente, basta fazer-me aquele olhar que eu faço ao Ruben Patrick quando desejo que o rapaz vá à vida dele e não me aborreça com menoridades.

Aceite um abraço, saiba que o abraço está no meu topo de afectos.

Pipoco Mais Salgado, sempre a considerá-lo.

6 comentários:

  1. Temo discordar da delimitação pombalina que nos impõe a nós, alfacinhas, o que não seria seguramente intenção de Garrett , o mesmo que, apesar de toda a sua teatralidade não apresentaria a escolha dum bom vinho como expoente máximo da sua teologia.
    Gostei bastante de ler o seu texto, o que já vem sendo coisa normal.
    Os meus respeitos aos participantes neste duelo de vitórias.

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  2. Rosbife au meunier deve ser uma coisa esperta Pipoco... mas até para panados um transmontano escolheria um Valpaços, da quinta do primo.

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  3. Sheila Carina12.8.13

    Está a sair-se muito bem e como espectadora imparcial concedo-lhe mais dois pontos, quer dizer, mais duas estocadas sem resposta a seu favor.
    Mantenha o tónus que vai sair vencedor deste duelo e sem ferimentos e sem amarrotar a camisa nem desalinhar a gravata ;)

    Sheila Carina.

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  4. Anónimo12.8.13

    Deves ter bebido esteva a mais. O transmontano, que tem para lá uns vinhos razoáveis, além de morar ao lado do Douro vinhateiro, vai escolher um Dão... um dão feito com malvasia(?) e aragonês...? malvasia quê? moreto? malvasia fina? que raio de vinho é esse? ou estás a alucinar, ou falhou-te a wikipedia.

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    1. Caramba, não há nenhum Dão com blend de um qualquer malvasia e aragonês? E o Dão é uma escolha improvável para um trasmontano?...

      (não há direito, tudo neste blog faz tanto sentido e agora acontece-me isto...)

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  5. Temo que este duelo ainda acabe num jantar de bloggers...
    (há sempre uma primeira vez ;)

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