14 agosto 2013

De como o excelente J. Rentes de Carvalho quase deixa Pipoco sem fala (Quase...)

Logo me tinham acautelado. Não fosse jogar as peras com quem de certeza levaria vantagem na solidez dos argumentos, na ciência da vida e no rendilhado da prosa, na capacidade de distinguir as castas de um Romannée-Conti, de falar com gastronómico deleite e fingida modéstia acerca da conjugação do vinho e o rosbife. Estava eu, pois, de aviso, mais ou menos preparado para reagir de forma adequada e não deixar que o seu florete me tocasse as partes vitais.

Com o que não contava, apresentando-me sozinho para o duelo, era que Dom Pipoco viesse acompanhado de sequazes aos vivas, comentando em seu favor, e daquela dama que, descaradamente, logo lhe atribuiu dois pontos de vantagem. Bem mo tinham dito e bem se vê, a luta é desigual entre os que manejam o florete com destreza e aplomb, e os que, se assim se pode dizer, em questões de esgrima continuam no paleolítico da moca e do estadulho.

Permita, pois, que faça um intervalo. Não vou reagir ao malicioso toque do transmontano sabido nas malas-artes da sueca ou na matança do porco, a que alude, mas desejo apontar que nunca a minha gente desceria a escolher um Dão, fosse ele encorpado. Desconhece Vossência as pérolas vinárias do nosso Douro? Nosso, sim, da gente cá de cima, pois mal vai se ignora as fronteiras que nos dividem.

Confesse-se touché e passo adiante, agradecendo a informação de que há uma classe de alfacinhas que não usa certas expressões. Parece-me de uma bizarria fin de siècle. Então nada os pica? Não picam? São tudo punhos de renda, veludos, maciezas? Pois olhe, a mim é por demais o que me pica e, sobrasse tempo, ficaria dias a resmungar uma lista em que a por si mencionada "tribo da faixa do meio" seria item menor.

Mas bem verdade é que, emigrante, tenho com o emigrante compatriota a mais curiosa das relações, e os que conheço sempre foram prontos a fazer-me sentir outcast, atitude que nada separa da discriminação ou da xenofobia pura e simples. Ao longo das décadas, aqui na Holanda a maioria deles habituou-se a olhar-me de viés. Por não alinhar com ideologias em moda ou ultrapassadas, não ser de associações, círculos, partidos, cliques ou claques, ter pouco amigos, não querer favores. Felizmente a situação agora é outra, porque a rapaziada que chegou nos anos recentes nem sabe que existo. Grande paz.

Mas tome os emigrantes da minha aldeia e arredores. Para a boa gente que me viu crescer sou uma desagradável anomalia: não enriqueci; em vez de construir maison vivo na casinha modesta que o meu avô materno fez com as próprias mãos; ausento-me na festa do orago. Mas sobretudo, sobretudo, magoo-lhes a sensibilidade com os carros. Apenas dois comprei novos, um esbanjamento, o resto é em segunda mão, ando com eles aos cinco e seis anos. A vizinhança dói-se, aponta a ferrugem nos pára-choques, as amolgadelas nos pára-lamas, o desleixo de só os lavar quando a poeira dificulta a visão. Então não me poderia dar um Touareg, como fulano? Um Jeep Grand Cherokee? Um Mercedes? E porque raio ando de lá para cá, a mudar de casa e de país cada três meses?

Explicações não dou, que a ninguém as devo, nem eles compreenderiam, mas imagina Vossa Excelência, Dom Pipoco, que por sair dos eixos correntes, me fazem sentir estranho na própria terra? E por essas mesmas razões outros me fazem sentir bem na terra alheia? Por menos se perde a cabeça, mas serei o último a pretender que a minha ainda está onde pertence, ou que funciona a contento, pois muito a tenho ocupado no cansativo exercício de ouvir e calar, compreender, esquecer, ir adiante tentando não olhar para trás.

Se a tivesse levantava agora a viseira, recuava um passo e, em despedida, tentaria imitar o elegante meneio de quem, como Dom Pipoco, sabe de esgrima.

Cordialmente seu,

J. Rentes de Carvalho

15 comentários:

  1. Anónimo14.8.13

    «estadulho», há anos que não ouvia esta palavra...

    Caro Sr. Rentes de Carvalho, (Sir Pipoco há-de perdoar-me a ousadia de me dirigir directamente ao meu amigo)permita-me que o aplauda de pé. Não imagina quão agradável tem sido assistir ao vosso «duelo».

    Com os melhores cumprimentos,

    N

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  2. Obrigada a ambos por nos entreterem de uma forma tão generosa.

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  3. Anónimo14.8.13

    Exmo Sr. J. Rente de Caralho, adoro lê-lo, mas ainda mais em duelos.... deixou uma mulher do norte maravilhada mais uma vez.

    Eternamente sua admiradora

    C.

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  4. Que bem que se está por estas paragens. Se duelo há, continuai , cavalheiros, por quem sois, esgrimi, que o deleite ainda não é um pecado mortal.

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    1. completamente de acordo! Acima estes duelos intelectuais e de palavras. Assim,sim, vale a pena.

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  5. Anónimo14.8.13

    "I think this is the beginning of a beautiful friendship".

    (inveja! :)

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  6. Dom Pipoco sofreu uma bela estocada. (De um cavalheiro que não percebe de esgrima...)

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  7. Anónimo14.8.13

    A bem de que o duelo prossiga o seu normal e extraordinário curso, permito-me avançar com a ideia de que se encontram empatados ao fim do primeiro round. Há que continuar, há que continuar... Para gáudio dos leitores!

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  8. A verdade é que a palavra duelo vos assenta que nem uma luva. Os duelos são feitos de cavalheiros, e esse catálogo identifica-vos bem.

    Maleável como poucos, o muy estimado J.Rentes de Carvalho prepara o arresto para uma estocada violenta. Contudo, confio na esquiva do muy nobre Dom Pipoco que não é homem de morrer depressa.
    Ao estilo do cangalheiro, não torço por nenhum. Torço pelo duelo que está vivo.

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  9. Sheila Carina14.8.13

    Oh! Senhor Rentes de Carvalho, fiquei desolada.
    Não pretendereis vós, senhor, terçar armas com uma Dama.
    Por uma Dama as armas terçam-se e os homens morrem, e os dois saem vencedores dignificados. Por uma Dama a causa é sagrada e engrandece os contendores: por fúteis motivos de vaidade pretensamente ultrajada, só a pontuação por pontos vai disfarçando o riso.

    Sheila Carina.

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  10. Anónimo14.8.13

    De facto, só J. Rentes de Carvalho para colocar a sobranceria do Pipoco em sentido.

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  11. Anónimo14.8.13

    Rentes de Carvalho, um senhor.

    Pipoco Mais Salgado, bemm se pode esquivar que no fim tem KO assegurado.

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  12. Anónimo14.8.13

    Radiante. Como leitora e como amiga.

    Maria Helena

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  13. Anónimo15.8.13

    Cum caraças!!! Isto está mesmo bom! estamos perante duas almas géNias!

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