18 janeiro 2016

As coisas são como são

O problema de escrever coisas, meu caro Lourenço, é que as pessoas nunca apreendem instantaneamente tanta informação como a que lhe dá um retrato. Tome o meu caro o exemplo dos gatinhos no retrato ali em baixo. Apesar de publicado no pior horário possível para comentários (um domingo por volta da hora de almoço), houve quem se incomodasse a dizer coisas. Publicasse eu um post só com palavras, descrevendo o meu almoço de guisado de javali e arroz de lebre, descrevendo os aromas subtis do vinho tinto e o ar frio de Sortelha, aqui e ali uma casa a largar fumo de lareiras crepitantes e o cheiro a lenha que se sentia na aldeia, e lá estava eu com três gatos a observar-me os movimentos do garfo a levar-me a lebre à boca, publicasse eu só palavras, ainda que o post fosse publicado às dez da manhã de segunda-feira, a melhor hora para publicar, e as pessoas não se emocionariam com os gatinhos.

Eu próprio poderia ter decidido não interromper a refeição e manter a imagem mental dos gatinhos ma janela. Preferi interromper, ir buscar um telefone que tira retratos, sei que é muito mais potente mostrar este retrato à minha mãe do que explicar-lhe por palavras os gatinhos na janela. Por outro lado, posso manipular a informação e transformar um almoço num sítio muito agradável, com excelente companhia, boa comida servida em generosas doses, um vinho adequado, tudo isso pode ser transformado numa memória "daquele almoço onde havia gatinhos na janela".

É por isso que escrever é brutal, quem está a ler percebe bem quando é manipulado ou não, não se contenta com dias menos bons do escriba, exige-lhe sempre estar ao melhor nível, eu próprio obrigo-me a condensar o que quero dizer, sei bem que as pessoas não têm todo tempo do mundo para acompanhar aquilo que estou a tentar partilhar, na maioria dos dias pressinto dedos a tamborilar na madeira, "despache-se Pipoco, não temos o dia todo para estar aqui à espera para saber onde quer chegar".

É por isso que os gatinhos são eficazes, as pessoas emocionam-se e não temos que lhes explicar mais nada, podemos mesmo escolher o retrato só com dois gatinhos mas com as pedras do castelo a fundir-se com o cinzento do céu e uma chaminé a deitar fumo ou escolher o retrato em que estão os três gatinhos, mas perde-se a informação da envolvente: Ninguém que saber se existe mesmo uma Rua do Forno de Gaz a uns metros da sinagoga de Belmonte, nem porque se escreve "Gaz" e não "Gás".

E agora vou ali postar mais um da série "O que vês da tua janela, Pipoco?",  aposto em dez vezes mais comentários do que neste post, apesar de ambos terem sido publicados ao mesmo tempo.

9 comentários:

  1. escrito na parede: eu li este post.

    ResponderEliminar
  2. Dois minutos deram para ler calmamente. :)

    ResponderEliminar
  3. Acho que o problema é que as pessoas estão cada vez mais preguiçosas para ler, principalmente na internet, onde tudo é mastigado e o que é brutal agora daqui a dez minutos já não interessa nada. No tempo dos jornais, ainda durava um dia, a notícia de hoje embrulha o lixo de amanhã, ou o peixe, ou as castanhas, ou lá o que é. Só o David Bowie consegue estar nos posts do dia há uma semana. Não é para todos, meu caro. Ou então é aquela velha máxima de a imagem valer mais do que 1000 palavras, embora me custe muito, apesar de gostar de imagem e do senso estético da mesma, de me encantar com ela, como com a do gato à janela, e não é porque é um gato, é pelo gato em si, pela luz, pela, lá está, estética, sou das palavras, ou não fosse eu uma incontinente verbal inveterada e incorrigível...

    ResponderEliminar
  4. Cláudia Filipa18.1.16

    Sim, o efeito da fotografia é imediato, a fotografia contém logo muita informação, e não é por acaso que se fala do poder da imagem e existe aquela expressão tão estafada que diz que "uma imagem vale mais do que mil palavras", digo-lhe que não concordo nada com esta expressão, imagine se toda a gente deixasse de escrever e passasse somente a tirar fotografias, ou se deixasse de falar e em vez de descrever com entusiasmo, ou não, o que tinha visto, as emoções que tinha vivido, se limitasse a apresentar fotografias dos vários momentos da sua vida, sabe aquela coisa horrorosa (pode não achar horroroso, eu acho) que é quando as pessoas viajam depois virem mostrar toda aquela quantidade enorme de fotografias, só por aí pode imaginar um mundo em que a palavra, a escrita, fosse substituída pela fotografia. Pois é, Pipoco Mais Salgado, "escrever é brutal" e ler também, e eu quando gosto do estilo de um autor, da sua escrita ou mais do que isso, da quantidade de ideias que transmite através do que escreve, nunca fico com os dedos a "tamborilar na madeira". Fotografia é complemento, e muitas vezes obra de arte, evoca momentos, aviva memórias, mas não é, acho eu claro, substituto. Agora, para ler, assim como para ouvir, é preciso mais tempo, mais disponibilidade do que para olhar para uma fotografia, lá isso é.

    ResponderEliminar
  5. Todos os seres letrados conseguem emocionar alguém com um texto escrito por si. Poucos seres conseguem arrancar emoções através da fotografia. Numa perspetiva puramente economicista, isso faria com que a fotografia fosse mais valiosa. Mas são coisas tão distintas que não saberia dizer se prefiro uma à outra.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Lady Kina18.1.16

      Cuquinha (permite-me lá diminutivar-te, hoje): preferir sei que prefiro as palavras, sempre as palavras, só não sei se isso tem ou não a ver com a minha (i)literacia. Já "aqui" se falou de desenho e pintura, por exemplo, manifestações ambas que carecem de punho. Talvez a fotografia seja mais solitária, na medida em que a mão que clica reclama menos de si (e também a pintura, também o desenho, afinal a Língua é sempre mais linguagem). (de todas, é a escrita quem me arranca emoções com frequência maior, todavia, nem por isso a sobrevalorizo relativamente ao silêncio)

      Eliminar
    2. Lady Kina18.1.16

      E a Música? Ninguém fala da música? (eu não, por isso até me esqueci de dizer que, de todas, é quem me arranca emoções com intensidade maior)

      Eliminar
  6. A música é uma arte superior. Concordo integralmente com isso. Está acima de todas as coisas. É a única que até um cão é capaz de emocionar.

    ResponderEliminar
  7. Pipoco, Pipoco, seu malvado...Assim como leio o jornal do fim para o início, também leio os posts de baixo para cima. Afinal, são três os gatos.
    Mas para lhe dizer a verdade, depois de ler este post, na minha fotografia mental não há gatinhos mas sim essas iguarias gastronómicas...até ouço o "glu glu glu" do vinho tinto...Enfim, um post muito visual e musical.
    (o glu glu glu é a minha proposta de onomatopeia para descrever aquele som que adoro, do início da saída do vinho de uma garrafa)

    ResponderEliminar